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Um conto para quem voa na TAAG


Estava sentado na minha varanda ao fim da tarde, o lugar mais fresco da casa, ao abrigo da majestosa buganvília cor de salmão que há anos trepou até se alcandorar na cobertura como a moldura de uma gravura antiga. É aí que me sento, lendo as histórias que escrevi e já esqueci, na tentativa efémera de me rever, de voltar a ser o que era. Tem sido assim desde que a idade começou a pregar-me partidas pontuando de manchas de esquecimento o tecido da memória, como nódoas de lixívia plantando ilhas brancas ou descoloridas no mapa da minha existência pregressa.

Como tudo o que escrevi relacionou-se de algum modo, directa ou indirectamente, comigo ou com alguém que me tocou em instantes mais felizes da vida, é nessas esquecidas páginas que procuro recordar o que então senti e lembrar-me de quem sou.

De quando em vez algum acontecimento na rua afasta-me da leitura e perco-me no vaivém das pessoas que voltam cansadas do trabalho para suas casas; em outros momentos, num relance mais ao longe, vejo a praia e chegam-me ao ouvido como prelúdios intermináveis o estralejar das ondas na areia.

Num desses raros e inapagáveis momentos, uma jovem montada numa motocicleta cruza repentinamente o meu horizonte descrevendo um traço ao longo do meu subconsciente, que me traz à ideia alguém que, também num fim de tarde luminoso de um tempo de que já não me lembro, havia passado por ali, parado e entrado na minha vida. Revelou-se esse um instante surpreendente de associação de ideias que me assolou e me fez estremecer, tornando o passado subitamente presente, como um relâmpago que torna dia a noite mais escura. Num segundo aspirei o seu perfume, senti os seus braços apertarem-me como os ramos da buganvília perene, veio-me à boca o gosto dos seus beijos... até o estalar do seu riso ao dizer-me adeus... Maldita amnésia que me deixa exangue de mais detalhes preciosos, me entope as coronárias e estanca o fluxo das minhas lembranças latejantes!

Estou à beira duma apoplexia, mal consigo respirar e debruço-me ofegante sobre a balaustrada. Vejo lá em baixo o mar soluçante e penso que só ele me poderá salvar, levando-me nas suas ondas arrulhantes... e é então que a vejo novamente, a rapariga da motocicleta que, de volta ao fundo da rua, pára diante da varanda, de pé bem fincado no chão para a equilibrar, uma mão no guiador, outra alçando o capacete descobrindo o sorriso e soltando os cabelos, acenando para mim...

Sinto que estou a ser vítima de uma incrível ilusão; espreito de soslaio o livro das minhas histórias romanescas aberto em cima da mesa, como se ela pudesse ter saído sorrateiramente de alguma página esquecida... mas apercebo-me, com louca estupefacção, de que é real, ela que grita o meu nome e me chama a rir… Sinto que o avesso da minha vida está virado do direito, que certamente recuperei a memória, talvez o amor, não me importando que esteja também a perder o juízo... mesmo à beira do mar.

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