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O Natal de Santo Onofre




Quem quer ser santo veste-lhe as heras e segura a cabacinha... Quando li o Santo Onofre do Eça de Queiroz o escritor e o santo ganharam um devoto. Em ambos me inspirei para escrever este conto que já contei noutros Natais. Mas neste de isolamento e desolação aqui o volto a contar, abrindo-vos o mar de dunas alterosas e calmas que nos levam para um horizonte sem fim.

Aproximava-se o Natal e uma meia dúzia de cenobitas azafamava-se em tarefas de limpeza da capela, do átrio e do pátio do pequeno monastério às portas do árido deserto, preparando a festa do nascimento de Nosso Senhor... e as boas- vindas a Pafúncio, prelado da cidade de Tebas cuja visita era aguardada a todo o instante.


Der-el Nefer, levantado com tijolos de barro amassado com palha, cobria-se de uma argamassa que lhe alisava os contornos como se de uma pele morena se tratasse. Avistado de longe, parecia diluir-se como uma miragem na paisagem arenosa. Era, todavia, uma construção de planta quadrangular com duas pequenas colunas na fachada que assinalavam a entrada para a capela sempre aberta à oração dos viajantes que percorriam o deserto. Frestas talhadas no alto facilitavam a circulação do ar e diminuíam a escuridão no interior. Quando o sol declinava, penetravam por aquelas aberturas espadas de luz cortando fatias de penumbra e deixando a poeira em suspensão fulgir como o ouro. Uma porta lateral abria-se a um pequeno átrio de onde, por meio de uma escadaria, se acedia aos dormitórios. Estes dispunham-se ao longo de um corredor com uma balaustrada virada para o pátio que servia de oficina e espaço de lazer dos monges. Neste mesmo local sentavam-se em torno de uma leitura conduzida pelo Pai, o abba, que orientava a vida da pequena comunidade, devotada ao sacrifício e a uma austeridade que aliava o rigor à crónica insipidez que só a presença feminina poderia, de alguma forma, aliviar. Poucos anos haviam transcorrido sobre o Concílio de Niceia, no qual o bispo de Tebas se insurgira contra o celibato dos monges. Sendo uma das vozes mais escutadas, não conseguiu Pafúncio demover os saudosistas do martírio que preferiam acrescentar às mortificações da reclusão a renúncia a toda a companhia feminina, como se o céu fosse o escudo sobre as suas cabeças e não coubesse na estreiteza dos seus miseráveis cubículos. Eram esses homens, calejados pela aridez do vento e dos areais sempre em movimento, que cozinhavam a magra refeição de cada dia, cozendo o pãozinho num forno de adobe num dos cantos do pátio e repartindo entre si a fruta amarga de alguma trepadeira, compensada, no entanto, pelo paladar das tâmaras, transportadas desde as margens do Nilo, ou por algumas gotas de hidromel, tão doce que só parcimoniosamente bebido não seria considerado um tentador pecado. Uma cacimba assegurava a pouca água de que dispunham para saciarem a sede e para a higiene pessoal. Um balde por dia para cada monge era a justa medida exigida pelo rigor da austera comunidade. Uma medida muitas vezes partilhada com algum sedento forasteiro que ali pernoitasse. Constituindo a hospitalidade e a partilha uma das regras cruciais, uma visita era sempre ocasião e pretexto para amenizar a rigidez da clausura. Por isso aquelas almas se agitavam e, cumplicemente, se sorriam, antecipando o deleite que lhes traria a anunciada visita de Pafúncio.


A alguns dias de viagem da cidade de Tebas, antiga capital de faraós e atualmente governada sob o cetro de um governador romano, o mosteiro erguia-se como uma sentinela atenta na fronteira entre dois mundos: o da opulência de Tebas e o do rigoroso despojamento do deserto que se estendia até às margens do Mar Vermelho. Apaziguadas que estavam havia muito as perseguições aos primeiros cristãos, as pequenas comunidades monásticas proliferavam em redor da cidade, florescendo junto de antigos templos tão grandiosos como palácios reais. Embora ostentando na própria carne as marcas do sacrifício, uma das missões de Pafúncio consistia em visitar os irmãos em voluntária clausura, levando-lhes palavras de alento e de renovada esperança na vinda de Jesus que o Natal simbolizava. Também Pafúncio sentira, antes de ser eleito prelado, o chamamento do deserto e percorrera a sua vastidão, procurando no fio das areias sem fim as pegadas de Deus. Numa dessas digressões, Pafúncio ouvira falar de Onofre, tebano como ele, que, impelido pelo desejo da perfeição, deixara a família e os amigos para se entranhar profundamente no deserto. Durante vários anos, Onofre preenchera a juventude dos seus vinte anos a consolar os aflitos, a ajudar os mendigos que perambulavam pelas vielas ou à entrada dos templos, a apoiar os mais abandonados e miseráveis, no afã de se tornar um discípulo dos ensinamentos de Jesus. O pai era proprietário de uma estalagem numa das ruas mais movimentadas de Tebas por onde passavam altos dignitários, nobres, cortesãos e aristocratas, frequentemente na companhia de mulheres de uma beleza singular, perfumadas e cobertas de adornos e véus transparentes cujas longas túnicas não raro se franziam, deixando entrever as correias coloridas das sandálias serpenteando pelos tornozelos acima... Onofre deixava-se seduzir facilmente por essas visões emocionantes, instantaneamente convicto de que tanta beleza seria obra de Deus, embora muito cedo se apercebesse, prostrado e humilhado, de que as maravilhas que julgava descobrir debaixo de tantos adereços não passavam de uma fugaz ilusão, incapaz de resistir à luz fria da realidade. Fora o ideal da perfeição a atraí-lo à vastidão oceânica de areia e a levá-lo a vaguear, mais longe que qualquer outro eremita, pelas profundezas do deserto. A sua quimera de superação não se contentava com a rotina de ajudar os mais desgraçados e abandonados da sorte; ele desejava ultrapassar esse comando de a todos amar. Considerava que também ele deveria ser objeto de amor, porém, um amor que não o decepcionasse. Ambicionava ser ele próprio transformado, pelo amor divino, em alguém tão perfeito que se pudesse aproximar do ideal místico de Nosso Senhor, cuja divindade o recente Credo de Nicéia viera reafirmar. A duras penas, Onofre aprendeu, porém, que o misticismo nunca se desligaria da sensualidade. Mesmo imerso na solidão da frágua onde encontrara refúgio nos confins do deserto e que em muito se assemelhava a um barco à deriva num imenso mar de argila, assaltavam-no as aparições das mulheres mais belas que conhecera em Tebas, para as quais desvairadamente estendia as mãos e apenas encontrava areia a escorrer entre os dedos. De decepção em decepção, Onofre regressava às suas batalhas internas, apercebendo-se de que os seus cabelos descuidadamente crescidos se tornavam tão alvos como a própria areia do deserto... A visão das belas mulheres de Tebas rareavam e só então Onofre teve consciência do abismo que o separava do mundo que conhecia... A quietude e o silêncio que tanto apreciava, crescentemente, instilavam-lhe o medo de se sentir completamente perdido e o terror de enfrentar as sombras que ao fim de cada dia lhe rondavam o abrigo, divisando nelas feras monstruosas e nunca vistas. Espavorido fugia a essas imagens espectrais, correndo escarpa acima para se esconder no interior da gruta, enquanto ouvia o bater descompassado do próprio coração. Só o sazonal reflorir da trepadeira que subia pela penedia tinha o condão de lhe devolver a coragem e a esperança para vencer mais um obstáculo. Como se as florinhas amarelas o lembrassem de que a vida, mesmo parecendo sempre igual, teria sempre um motivo para recomeçar. Onofre tornava-se mais perseverante na leitura dos Evangelhos, rezava e comia tâmaras ressequidas ou roía uma côdea que sobrasse da última passagem por ali de um dos monges do mosteiro mais próximo. Onofre interrogava-se sobre o sentido da vida. Depois de tanta renúncia e tanto sacrifício, ele continuava, contudo, o mesmo que voltara costas a Tebas. A chegada do enviado de César e do seu séquito de quadrigas puxadas a cavalos interrompera o seguimento melancólico da sua meditação. Solicitavam-lhe que se dirigisse a Roma, ao palácio do imperador, pois chegara o momento de firmar em todo o império a fé em Jesus Cristo Nosso Senhor, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. O próprio Deus, misterioso e inatingível, que os heréticos propalavam, tinha afinal um rosto e um itinerário visível e palpável, e ninguém se encontrava em melhor posição do que Onofre junto de César para revelar a boa doutrina e a tornar universal. Onofre não ascenderia ao céu, mas, ao lado de César, deteria um poder real e efetivo e tudo o que na terra ligasse seria ligado no céu, e o inverso também seria verdadeiro. Reparou atentamente nas suas vestes cerzidas com folhas e nos restos de uma pele surrada que o cingiam. Como poderiam elas estar à altura dos paramentos pontificais que o novo cargo reclamaria? Como seria possível ver-se dentro deles? O êxtase que em sonhos atingia nos braços que o apertavam e circundavam como as correias de uma sandália não se sobrepunha ao inebriamento que lhe proporcionava a inefável sensação de poder. Também nesse instante Onofre cerrou as pálpebras frementes de prazer, para nada ver, quando os abrisse, que não fosse a imensidão vazia à sua frente. Recolheu-se, então, humilhado ao seu tugúrio, ruminando na armadilha diabólica em que quase caíra.


Entretanto, a sua fama de eremitão empedernido corria como o vento no deserto que ninguém sabe de onde vem nem para onde vai... Não faltavam peregrinos em busca de um conselho, de uma bênção, da cura para um mal renitente ou cruel... Quem mais, além de um homem de Deus, seria capaz de fazer milagres? Onofre vira com grande espanto como, ao simples toque da sua mão, a lepra desaparecera e dera lugar à pele acetinada de uma criança num corpo desfigurado. Assustara-se quando um cego a quem abençoara recuperara a vida do seu olhar, e todo ele se atemorizara quando um paralítico, locomovendo-se como uma aranha com a ajuda de mãos e braços que rastejavam pelo chão, obedecera com êxito à sua ordem de se levantar e caminhar.


À medida, porém, que tantos milagres Onofre realizava, era ele quem perdia a vista, o cabelo que lhe chegava desordenado abaixo da cintura ia rareando e tão enfraquecidas sentia as próprias pernas que só com a ajuda das mãos conseguia trepar pela penedia até à entrada do seu recanto. Seguindo tremulamente com um dedo as linhas dos Evangelhos, Onofre perguntava-se se não teria finalmente atingido a perfeição em cuja perseguição se lançara, qual um louco foragido. Seria possível que aquilo em que se tornava fosse o homem transformado pelo amor divino como se propusera havia mais de quarenta anos? Repetiu a pergunta a Pafúncio quando este o encontrou.


“Muito me admira essa dúvida, tal é a reputação de santidade e sabedoria que o circunda, irmão Onofre...”

“A verdade, irmão Pafúncio, é que me cansei de querer ser perfeito... Venci tantas tentações para não resistir à pior de todas elas... Aquela que em mim se insinuou sem dela me aperceber...”


“Tentação? Mas que tentação?” perguntou Pafúncio, olhando admirado à sua volta as penedias enegrecidas, como pequenas fortalezas implantadas contra a vastidão do areal mutante, cambiando de cor e ondulação ao sabor da luz do sol e do vento.


“A tentação de me julgar melhor do que os outros” volveu-lhe Onofre com um sorriso irónico espreitando por entre os cabelos e as barbas molhadas pela pouca água que escorria da sua cabaça... Um prazer, um dos raros prazeres que indulgentemente se concedia ao fim da tarde, durante os preparativos para a última refeição, antes de se recolher e adormecer a meio das suas intermináveis orações. “A vaidade, irmão Pafúncio, a vaidade...”


“A vaidade? Mas isso é ridículo! Compreendo as tentações da carne, eu próprio pensei sempre que a melhor maneira de as vencer seria não lhes resistir... E disse-o... Ninguém me deu ouvidos... Ou a tentação do poder... A sedução do poder é muito mais feroz do que a sedução de uma mulher... O irmão Onofre sabe-o bem melhor do que eu, porque a ambas superou... Até o prazer de devorar um naco de borrego assado trocou por mastigar um pedaço de farinha amassada, o pão nosso de cada dia que sempre lhe bastou... E fala-me dessa caricata e risível tentação de que é bom? Onofre, meu irmão, nisto de bondade, ou se é ou não se é... De que espécie de tentação me fala?”


“Apercebi-me do meu pecado quando as minhas mãos começaram a operar coisas miraculosas sem uma racional explicação... quando me atrevi a compará-las às maravilhas de Nosso Senhor... quando acreditei ter atingido a meta para a qual corri, na ânsia de me desembaraçar do homem que era e me transformar no homem novo que Jesus Nosso Senhor apregoou...”


“Só vejo razões para estar feliz por isso, irmão Onofre, porque o conseguiu... Há horas que oiço a sua história e regozijo-me, nem imagina quanto, por o ter encontrado... Vê-lo finalmente, em carne e osso, o santo do deserto de que tanto ouvi falar... Mas longe de mim ferir a sua modéstia...”


“Não fere coisa nenhuma, irmão Pafúncio, porque ela não existe, a minha modéstia simplesmente não existe... Nunca existiu... Compreende, Pafúncio? Quando deixei a casa paterna e troquei os meus afazeres e muitas riquezas pela mais completa pobreza, já essa decisão significava a eloquente afirmação da minha vaidade e orgulho em ser melhor do que os outros... Apenas não o reconheci... Sob o pretexto de imitar o nosso Salvador, tornei-me no salvador de muitos e converti-me naquilo que hoje sou... um santo... Desgraçadamente não se pode chegar a essa convicção de santidade sem se cometer o mais grave pecado da imodéstia!”


“Muito sinceramente, Onofre, julgo que está a laborar num terrível equívoco... Basta recordar como Nosso Senhor afirmou que ninguém pode fazer milagres em seu nome e ser contra Ele... O Onofre é um homem de Deus a quem, a todo o momento, devemos dar graças e louvores... Eu próprio o tenho procurado com a secreta esperança, quem sabe, de que também me pudesse curar das horrendas mazelas do meu martírio.”


Onofre olhou compadecidamente para o monge que sobrevivera, durante as perseguições de Maximinus, às piores torturas. Lembrou-se que também Jesus, depois de ressuscitado, continuou a desvelar as feridas dos pregos que o haviam prendido à cruz e a chaga da lança no final da crucificação. Insaciável na imitação de Jesus, quase contemplou com certa inveja os vestígios das torturas infligidas ao então jovem Pafúncio.


“Não se aflija, irmão Pafúncio... Brevemente encontrar-me-á estendido sobre esta fraga que foi a minha ara de suplício ao ardor do sol, mas também o berço que me embalou ao fim de cada tarde, gozando a aragem morna que como um bálsamo me consolava o corpo cansado.”


“Ora essa, irmão Onofre... Ainda agora falávamos sobre a vida... Um homem de Deus desafia a própria eternidade...”


“Tenha cuidado, Pafúncio... é assim que se começa... Mas vou preveni-lo e tenho de o fazer, porque será importante para ambos... A noite passada tive um sonho... Chegaria do deserto um padre a quem eu contaria a minha história para que ela não se perdesse para sempre encerrada nesta cova de granito... Seria o mesmo padre quem voltaria para me enterrar, estando os meus dias já contados...”


“Sonhos, Onofre, como pode acreditar numa coisa dessas... Sonhos são como as miragens... Vemos o que julgamos ver...”


“Não neste caso... posso asseverar... Logo o reconheci tal como o vi no meu sonho... Um padre do deserto claudicando de uma perna, avançando agarrado a um bordão e girando a cabeça para olhar de frente, sobrevivendo-lhe unicamente um olho são...”


“Ora, ora, Onofre... O mais certo é que tenha ouvido contar a história por que passei... Tornou-se uma lenda e são águas passadas, embora Deus Nosso Senhor não quisesse que me esquecesse...” Pafúncio concluiu em tom de desabafo: “Seja para sua maior glória...”


“Verá que não é bem assim como pensa... Posso oferecer-lhe, irmão Pafúncio, toda a hospitalidade que merece?”


“Partilharei com alegria o pouco que tiver, meu irmão... Um pouco de pão e um resto de sopa de lentilhas...”


“Pois terá uma refeição servida por um anjo... Nada lhe faltará!”


Pafúncio, que de tão longe viera para o conhecer, lamentou que a idade e a notória fraqueza do eremita dessem provas de alguma senilidade, fatal e inevitável consequência da decadência humana. Contemplou, porém, com súbita admiração uma toalha com a alvura do linho que, por entre as sombras da escarpa, flutuava e suavemente pousava na laje em que os dois se encontravam. Numa bandeja cintilante foram servidos suculentos manjares, enquanto de uma ânfora de cristal escorria para vasos de prata um vinho puríssimo.


“Mas o que é isto? Outro milagre seu ou estarei a ser vítima de uma alucinação? Não será esta, certamente, uma hora propícia a miragens...”


“Não lhe contei tudo... No meu sonho não fui apenas instruído acerca da sua vinda, irmão Pafúncio... Também me foi revelado que, pela hospitalidade que lhe é devida, este momento será igualmente para mim o banquete para que muitos foram convidados... e poucos os escolhidos... de entre os estropiados, aleijados, isolados e abandonados... Não se tratou de nenhum milagre meu, foi realmente um anjo que nos serviu!”


No dia seguinte, aos primeiros raios da manhã, com o alforge carregado do que da lauta ceia sobrara, Pafúncio subiu para o dromedário e pôs-se a caminho. Deveria regressar em dez luas, conforme ajustara com Onofre.


Poucos dias antes da data combinada com o solitário, Pafúncio chegou a Der-el Nefer onde se sentiu festivamente acolhido pelos monges que, depois de efusivos abraços, o conduziram em procissão e ao som de hinos cantados até ao interior da capela para a costumada ação de graças. Pafúncio sentia-se, porém, impaciente, e quando à noite contemplou a lua que se erguia redonda como a roda de um carro egípcio, percebeu que não havia tempo a perder se quisesse cumprir a promessa que fizera a Onofre. A lua brilhava em todo o seu esplendor no horizonte quando, empoleirado na sua pachorrenta montada, Pafúncio deixou para trás a obscurecida silhueta do mosteiro. Todo o dia caminhou, detendo-se apenas no momento em que o sol baixou, decidindo-se a passar a noite, convenientemente abrigado, entre uns pequenos rochedos. Com o olho são não se cansava de repetidamente apreciar os reflexos prateados do luar na ondulação das dunas, no meio da tranquila solidão e imensa quietude. Tendo bebido o seu chá e se enrolado numa velha manta, aguardava o sono dos justos. A noite seguinte seria a de Natal. Pensando na refeição melhorada para a qual fora convidado pelos monges de Der-el Nefer, recordou o estranho banquete oferecido por Onofre dez meses antes. A última ceia antes do grande sacrifício, assim o dera a entender o eremita. Pafúncio sentiu um arrepio e finalmente adormeceu. Pela madrugada retomou a caminhada para mais um calculado dia de viagem. Seguia meticulosamente o itinerário que traçara até ao refúgio de Onofre, mas, sempre caprichosas, as dunas mudavam de lugar, trocando as voltas a Pafúncio que desesperadamente constatou que estava perdido. O sol já se pusera e os vestígios sanguíneos que espalhara no horizonte rapidamente se desvaneciam, lembrando como no deserto se tornava arriscado prosseguir viagem por dentro da noite. Procurou orientar-se pelas estrelas que, apesar de demasiado altas, pouco lhe serviram de ajuda. Sentia que talvez estivesse muito perto e, no entanto, não havia sinal que o guiasse. Rezava para não ficar ali perdido... quando subitamente o seu dromedário parou, incapaz de avançar mais um passo. Provavelmente estaria exausto, o pobre animal... Jamais deveria ter prosseguido depois do pôr-do-sol, lamentava-se, dessa forma arrependida, Pafúncio. Carinhosamente afagou-lhe o dorso e a montada retribuiu o gesto de afeto retomando vagarosamente a sua marcha... Não fora, todavia, o acalento a causa do despertar da montada de Pafúncio, antes um misterioso tremeluzir no meio da escuridão que se avistava não muito longe de onde se encontrava. Foi na sua direção que o animal se pôs a trotar, mal deixando Pafúncio perscrutar as cintilações que se elevavam à altura vertical do céu. Lágrimas corriam copiosamente tanto do olho são como do olho vazado de Pafúncio enquanto, a sacolejar na sela, pressentia, antes de efetivamente reconhecer, que se situava diante do eirado de Onofre, o declive no alto do qual se rasgava o seu abrigo. De braços afastados, o velho eremita jazia como um crucificado na pedra escalvada, bordejado por uma miríade de escaravelhos luminescentes que conferiam à aspereza da penedia a aparência de uma joia cravejada de pequeninos brilhantes. Tudo parecia tão petrificado, não fossem o piscar dos vaga-lumes que, com as suas intermitências luminosas, carpiam o finado e o esvoaçar ao vento das longas barbas brancas de Onofre acenando um último adeus.


Com inesperada desenvoltura, Pafúncio encaminhou-se apressado na direção de Onofre, na expectativa de que ainda orasse pelo nascimento de Nosso Senhor, acolitado pelo inexplicável enxame luminoso. Embora de olhos fixos no céu, nada viam, pelo que Pafúncio piedosamente os cerrou, ajoelhando-se, pesaroso e comovidamente, diante do homem que, de tão longe, viera sepultar. Não se apercebera ainda de que ele próprio via nitidamente dos dois olhos e que não precisaria mais do bastão para livremente se mover.




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