Um Principe angolano
- Onofre Santos
- 1 de mar. de 2017
- 3 min de leitura
Quando ao fim da missa no claustro do Liceu eu era autorizado pelo Padre Nascimento a esgotar o que restava de vinho doce nas galhetas, ouvia frequentemente o diálogo entre o jovem sacerdote e as muitas admiradoras que sempre dele se acercavam pressurosamente. Perguntavam-lhe respeitosamente se o deviam tratar por Sr. Padre pu por Sr. Doutor... ao que ele respondia, invariavelmente, com o seu sorriso resplandecente e sedutor que tanto fazia.... uma humildade que quase tocava o outro extremo, mas que eu compreendia do fundo do meu coração inebriado pela admiração que por ele também sentia e pela minha incapacidade de renúncia ao prazer inefável do escorrer por mim adentro do néctar que escapara à consagração.
Já lá vão 65 anos, pelo menos... eu era um sacristão de pouco mais de dez anos... quase no fim do liceu foi ele que recomendou para meu explicador de latim, o Padre Muaca que vivia no último quartinho ao fundo do corredor do Paço logo atrás do refeitório. Todos os sábados de manhã descia a escadas com a batina enfiada sobre os calções que eu apesar de todo o respeito não evitava que lhe visse as pernas e os pés metidos nos quedes... Não consegui nunca afastar essa imagem folgazona da figura ornada de mitra e báculo de Arcebispo de Luanda que mais tarde conheci.
O Padre Nascimento fora entretanto mandado compulsivamente para Portugal, com o outro Padre seu rival de púlpito, o Padre Pinto de Andrade, cujas homilias ninguém perdia na Sé, hoje Igreja dos Remédios, entre as imagens estáticas e coloridas de São Pedro (com as suas chaves) e São Paulo. Em Portugal, na faculdade de direito se tornou meu colega jurista, ele que já o era de direito canónico. Sempre pensei que ele seria não apenas bispo, mas príncipe Cardeal, e porque não Papa? Poderia eu então escrever, como aproveitando o lusco fusco ele acedia a vir comigo à baía dar um mergulho, que gozava como um autêntico banho lustral. Á descrição desses momentos juntava-se o silêncio pois enquanto nos banhávamos, as nossas cabeças apenas boiando à superfície não trocávamos uma palavra, exactamente porque nenhuma era precisa. O meu amigo Cardeal já deve ter esquecido há muito esses instantes de intimidade respeitosa mas eu recordarei esses momentos que brilhavam como as peças de um tesouro que uma criança sonhadora guarda para sempre no seu coração.
Quando, porém, em 1992 voltei a Angola depois da paz de Bicesse, o meu nome apareceu nos jornais e falava-se de mim para dirigir as primeiras eleições pluripartidárias no País. O meu nome apareceu de forma tão inesperada que a Representante das Nações Unidas no seu livro me descreveu como um dark horse, ou seja, um concorrente sem qualquer possibilidade de figurar em qualquer agência de apostas... Hoje sei que apenas uma pessoa indicou o meu nome ao Presidente da República a quem cabia a nomeação do Director Geral das Eleições. Quando o Cardeal se foi registar como simples cidadão eleitor eu estava ao seu lado e ouvi a sua exortação para que todos lhe seguissem o exemplo, de alguém que acredita em Deus e para isso rezava todos os dias mas que também acreditava no seu País registando-se para poder votar como era a sua obrigação indeclinável. Durante esse período procurei-o muitas vezes no corredor por cima do velho claustro do Paço. Muitas vezes esperei que terminasse as suas orações. Depois aparecia sempre jovial e conversávamos sobre os acontecimentos que se sucediam a grande velocidade e alguns com grande preocupação. Por vezes convidava-me para o acompanhar num trago de wisky e mastigar um pouco de carne seca que guardava religiosamente num pequeno frasco transparente. Mais tarde ia a sua casa dar-lhe os parabéns pelo seu aniversário. Era ele que então me oferecia alguns dos seus livros. Um que tenho à minha cabeceira relata o seu sermão ao agora São João Paulo II que o convidara para pregar num retiro no Vaticano. Lembrava-me sempre que ele fazia anos no dia da fundação da Universidade de Coimbra, a segunda mais antiga da Europa (1211). Ele falava-me, então, do seu sonho da Universidade Católica em Angola. Esse e outros sonhos se foram tornando realidade e apenas a idade sempre cruel no seu avanço o fazia pensar que um dia, o seu dia também chegaria. E como homem pobre que era rico em tanta coisa, mostrava-me a imagem de Nossa Senhora em arte africana que tinha em casa ao lado do retrato da sua santa Mãe, dizendo-me que o seu último desejo era oferecer aquela imagem da Mãe de Deus ao Papa. Papa esse que já está no Céu ao lado do original... mas deverá sorrir benevolamente para o legado que nem um santo como ele, pode desdenhar. E é com se ouvisse Wojtyla dizer... "deixa estar Alexandre, ela faz-te muito mais falta a ti.... e que o seja por muitos anos" PARRABEENS!

NS!
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