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A gente habitua-se


A gente habitua-se a ver partir os amigos que fizeram parte do nosso álbum de recordações como se eles continuassem tão vivos como nesta fotografia dos anos 50 no Liceu Salvador Correia em que todos aparecemos aureolados de esperança na vida, ansiosos por descobrir tudo o que ela tinha guardado para cada um de nós. Amigos para sempre parecemos todos dizer. Hoje essa palavra perdeu a tonalidade vibrante para se tornar um tempo finito que se vai esgotando como água escorrendo por um fio de uma canalização antiquada. Desta vez foi o Fernando Antas de Almeida. É o que aparece mais à esquerda na fotografia de braço dado à colega Maria Eugénia Águas Cruz.

Li numa nota do Manuel Mascarenhas Gaivão no Facebook que o Fernando partira para se juntar aos seus pais. É um pensamento que conforta, sobretudo porque sei que esse seria há muito o seu maior desejo. Não constituiu família e desde que voltou de Angola era com a mãe que sempre estava. Em cada Natal recebia um telefonema a desejar-me as boas festas e, tal como eu, dezenas de amigos receberiam um telefonema idêntico. A sua gentileza não tinha limites e era feliz à sua maneira simples e resignada de viver. O papa emérito Bento XVI também disse numa entrevista depois de ter abandonado o trono pontifício que esperava um dia reencontrar a sua mãe o seu pai e que vivia com essa esperança. Como ele acrescentava, era melhor acreditar nisso que não acreditar em nada. O Fernando também estava só, mas muito mais cansado. A última vez que o vi e acompanhei a casa, amparando-o no seu equilíbrio instável, até o deixar deitado numa cama desolada, várias vezes o ouvi reclamar dolorosamente ao pai porque não o levava. Eu ouvia e não percebi a que pai ele se dirigia. Quando fechei a porta não imaginava que o pai o viria buscar antes de nos voltarmos a encontrar. Olhando para a fotografia onde se destaca o seu porte delicado, que mantinha quando se transformou num velho de barbas longas e veneráveis, recordo o dia em que o vi oferecer duas pombinhas à Lali, sob o brilho de breve ironia perpassando no rosto severo do pai Macambira como rasgo de sol num horizonte carregado de chuva tropical. As pombinhas arrulhavam dentro de um cartucho de mercearia e aos meus olhos, do alto dos meus 12 anos, aquela oferenda de que eu nunca me lembraria, evocava na minha mente fervilhante os sacrifícios para testemunhar o amor ao altíssimo que lia apaixonadamente no Antigo Testamento. O Fernando não ficava feliz quando eu lhe recordava esse episódio de pura galanteria talvez porque achasse que eu troçava dele ou porque a lembrança ainda lhe despertasse uma réstia de um fulgor desertado há muito.

Quando o acompanhei depois do nosso último almoço, observei penosamente que o meu amigo não tinha um único livro em casa. Gostava de lhe oferecer um dos que escrevi ao longo destes últimos anos. Histórias de amor de que talvez fosse capaz de gostar. Depois pensei que ele queria era ficar só com os seus pensamentos e recordações. Por fim, acabei por lhe enviar o meu Vida e Morte do Comandante Raul Moralesque bem poderia arrancar um sorriso ao seu rosto ressequido e distante. Terá chegado precisamente no dia em que recebi o telefonema do Manuel Gonçalves a anunciar-me que ele chegara ao fim da sua própria história. Para mim fica a fotografia do Liceu e a lembrança das duas pombinhas esgravatando o cartucho à procura da luz, fosse do afago das mãos de Lali ou da panela de arroz no fogão do pai Macambira.

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