top of page

A paleta esquecida


Penetrei há dias no sacrário de um artista, o seu velho ateliê meio desarrumado nas ainda com os os seus cavaletes majestosamente erguidos ostentando pinturas que brilhavam a uma luz que misteriosamente mergulhava de um resto de céu nas alturas como se um anjo travesso apostado em revelar os segredos daquele estúdio atravessasse a clarabóia dissimulada no tecto. Fixei-me nos vários potes de porcelana carregados de pincéis com as suas escovas das mais variadas dimensões mas reflectindo todas as a mesma tonalidade fenecida da cinza de quem já não recordam a ultima vez que poisaram nas flores de óleo plantadas na paleta esquecida do Mestre. Estavam na altura na berra as exposições de Almada Negreiros e de Amadeu de Sousa-Cardoso dois vultos incontestáveis e incomparáveis da pintura portuguesa. Nem o facto de Almada ser oriundo de São Tomé nem o apelido que adoptou impediu que a sua arte com todas influências ecuménicas fosse assim sempre considerada. A dar conta a uma notícia dada a conhecer pela Agência Lusa proveniente da Aqueduto - Avaliadores & Leiloeiros, disse à Agência Lusa duas obras, uma de Carlos Reis, uma paisagem a óleo da Serra da Lousã, e um desenho colorido de Almada intitulado "Alegoria ao Comércio", assinado, datado, e dedicado "à Maria do Rosário, Lembrança do Almada, 1958", atingiram o valor mais elevado, num leilão de 250 peças de pintura, cerâmica, pratas e mobiliário. Hoje não será moda falar, muito menos expor Carlos Reis que pintou o Rei D. Carlos, garbosamente sobre a sua montada, D. Manuel, o último e desventuroso rei de Portugal, o Presidente Carmona, o Cardeal Cerejeira e outras figuras gradas do chamado Estado Novo que hoje ninguém se quer lembrar em Portugal independentemente do talento de quem as eternizou em tela. Por estranho que pareça, Salazar continua na mesma parede em que foi colocado no edifício da Câmara de Goa. Um quadro, pintado por João Reis, o filho e discípulo de Carlos Reis, por encomenda da cidade goesa. Quando nos anos 80 visitei Goa, depois de ter ficado maravilhado com o arco dos Vice-Reis cercado pela vegetação que pujante cresce à sua volta, o que mais me surpreendeu foi dar com o olhar penetrante do antigo Presidente do Conselho Português, aquele que muito claramente dissera que preferia perder uma das mãos a perder a India Portuguesa. O quadro lá está com as duas mãos bem à vista, ainda que se adivinhe a vontade que o retratado teria, se pudesse, de as esconder.

Mas a história é a história e não há ideologia que a apague. Bela esta lição que nos vem da União Indiana que tinha boas razões para apear o seu ilustre inimigo de estimação.

Posts Em Destaque
Posts Recentes
Arquivo
Procurar por tags
Siga
  • Facebook Basic Square
  • Twitter Basic Square
  • Google+ Basic Square
bottom of page