LU LU LUANDA
- Onofre Santos
- 7 de mar. de 2017
- 4 min de leitura
Não vai dar Teta, tu és uma artista, cantas e danças como ninguém mas eu não passo de um aspirante a funcionário lá no partido e tenho 24 horas para apresentar uma ideia de campanha que eles querem que seja arrasadora..... como posso acompanhar-te hoje, por mais que o que mais eu adorasse era ver-te.... ver-te arrasar, pronto, é a palavra exacta.
Poças, Carlitos, se tu mesmo é que já estás arrasado como é que podes arrasar alguém ou alguma coisa? Olha-me bem, eu amo-te, eu vou-te amar para sempre, mesmo que divididos pelos nossos partidos e pelos nossos pais.... ai, se o meu soubesse que eu estava metida com um revú, estava literalmente perdida... o mundo acabava.... mas olha à nossa volta, temos a cidade mais linda do mundo...
Cheia de lixo é o que é, o melhor que temos, o sol, afinal apenas mostra cada dia mais amontoados, a apodrecer.... os pobres a deambular pelas estrumeiras....é cada vez mais uma cidade de fantasmas.... e depois a culpa é sempre a crise...
Carlitos, olha bem para mim e diz-me, sinceramente se tudo o que vês é lixo e podridão.... as pessoas, a nossa gente o que são? E hoje, sobretudo hoje, quero apenas música para os meus ouvidos, nem sei como te ainda dou atenção... sai dessa, por favor... se estás num buraco como queres subir para a ribalta da campanha e espalhar novos sonhos? Aí no fundo onde estás, vais acabar despedido ao fim do dia.... Vem comigo, vou-te levar a um lugar que estás farto de ver mas nunca viste através dos meus olhos!
Que achas?
A velha fortaleza.... sim, daqui Luanda até parece mais verde e o mar ao fundo tão azul.... pena que parece mais uma cartaz de propaganda do teu partido....
Deixa-te de parvoíces.... não é o que tu vês o que mais importa... mas o que sentes... não são as imagens que conquistam as mentes.... mas as emoções... Luanda, uma cidade com histórias, não só para contar... mas para reviver.... vê ali a nossa Rainha Ginga.... imóvel, tanto quanto eu posso imaginar, está cheia de fogo por dentro, basta ela agitar um braço, lançar um olhar à sua volta e saltar do pedestal que a aprisiona como uma pedra tumular, tremular o corpo num arrepio, estender a mão a um toque humano, rodopiar, dançar.... e não faltam cavalheiros....
Quem? Aquelas estátuas mudas e petrificadas?
Carlitos, não te avisei já que visses as coisas pelos meus olhos? Repara como não é só a D. Ana de Sousa que se move e avança, majestosa e altaneira, também os antigos descobridores, navegadores, conquistadores, poetas e aventureiros se perfilam com rigor protocolar e em vénia respeitosa descobrem as suas cabeleiras lustrosas subitamente libertadas dos sombreiros emplumados, desviando as suas capas de veludo deixando luzir a bainha das espadas que tantas vezes fora delas refulgiram e se mancharam do nosso sangue... agora quietas e mansas como um adereço romântico....
Ora bolas, Teta... não passam de montes de pedra e ferro velho...
Errado, Carlitos, sem inspiração, sem luzes, sem cor e sem movimento, nada, mas absolutamente nada, se constrói! Imagina apenas a túnica da Rainha transformada em longa cauda rendilhada de noiva intangível como a espuma do mar bravio em noite de calema... e ali o Almirante dos Mares do Sul, esquecendo o negreiro que veio libertar esta fortaleza dos holandeses por lhe estar a fazer imensa falta a nossa mão de obra para os engenhos do Brasil... cofiando sedutor os seus bigodes para a rainha que parece não estar imune aos seus encantos, ao brilho dos botões sobre a farda azul, o tilintar das esporas a capa aconchegante que tanto lhe pode servir de abrigo como de tapete voador para viajar entre as estrelas de Luanda numa noite como esta....
Que imaginação Teta, sinceramente, se não fosses a artista que todos aplaudem bem podias escrever-me o plano de campanha que o meu partido me deu 24 horas .... meu Deus, já é quase noite, tenho de ir... senão o que me espera logo na reunião é o ridículo, os risos de troça dos meus companheiros.... que pena estarmos aqui os dois... tudo quase perfeito para o nosso romance... maldita política que nos separa e enlouquece mesmo...
Que desperdício de uma noite tão maravilhosa... com tudo para ser o máximo, o que ninguém teve antes... mas, atenção, Carlitos.... ainda não passou completamente o momento mágico em que a luz fugidia vai trocando as cores, uma a uma, pelos tons de cinza... repara como todas as estátuas estão garridamente coloridas, qual garbosa corte da sua Rainha!
É incrível Teta! Devo estar a enlouquecer, mas também as vejo, como espectros a correr alegremente para a muralha para absorver os últimos raios do pôr do sol. Será que se revelam assim só para nós? E porquê?
Ai Carlitos... que pergunta... mas é bom saber que também tens olhos de ver e que esta hora não foi uma perda de tempo! Esta não é uma cidade de estátuas... gente que se guerreou e amou, incendiou e destruiu quase tudo... pois ficou esta fortaleza no cimo do morro, não para contar histórias, enredos ou intrigas mas para libertar o enternecimento, os sentimentos, as emoções derribando a perpetuidade de uma condenação a que só os cegos chamarão de destino.
Sabes Teta? Já tenho algumas ideias brilhantes para o meu desenho de campanha...
Vais arrasar? Diz-me o que descobriste seu revú empedernido ou facilmente transformo-te numa estátua....
Não divido, Teta... tu és meia feiticeira...
A resposta, Carlitos... quero a resposta...
É o amor! Vê lá em baixo, tanta gente, a nossa gente seguindo apressada para as suas casas, as primeiras luzes que se acendem por todo o lado agora que a noite nos aprisionou, somos todos fugitivos, correndo ao encontro do amor de alguém...

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