O canto de uma sereia
- Agnela Barros
- 8 de mar. de 2017
- 6 min de leitura

Durante muito tempo, assistimos à reconversão de muitos escritores em políticos, desta vez encontramo-nos perante um político que optou pela escrita literária, sob uma aura de simplicidade que poderá fazer mudar de ideias a alguns, para quem a complexidade da nossa literatura a remete para as cátedras da universidade. O seu nome é ONOFRE ANTÓNIO ALVES MARTINS DOS SANTOS, nascido em Luanda aos 16 de Dezembro de 1941.
Designado Juiz Conselheiro do Tribunal Constitucional, pelo Presidente da República de Angola, aos 20 de Junho de 2008, cargo que ainda desempenha. Ex-aluno do Liceu Nacional Salvador Correia. Licenciado em Direito (1954-1964) e em Ciências Económicas e Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (1964-1966). Advogado em Luanda desde 1966, exerceu cumulativamente as funções de Juiz do Tribunal de Menores e de Execução de Penas até 1975. Foi o Director Geral das Eleições realizadas em 1992. Exerceu também diversos cargos como Consultor eleitoral em missões das Nações Unidas (1994-2005). Concluiu recentemente o curso de pós-graduação em Direito de Petróleo e Gás (2009-2010) na Faculdade de Direito na Universidade Agostinho Neto.
Literariamente se apresenta como Onofre dos Santos que, pela manutenção do nome do registo, pode levar à tentação de confusão entre as suas funções, até porque perpassa pelas suas obras um forte sentido de justiça, raiando por vezes a autocrítica severa.
A sua vida, por si só, é de uma riqueza extraordinária em que se contam tantos os feitos com que a preencheu e ainda preenche, como as várias missões eleitorais, quase todas patrocinadas pelas Nações Unidas, que o levaram à Guiné-Bissau, Serra Leoa, Bangladesh, Vukovar (antiga Jugoslávia), Lesotho, República Centro Africana, Costa do Marfim, Níger, Gana e Moçambique.
Oferece-nos um livro que reúne 11 histórias, cujo título é extremamente sugestivo: O Conto da Sereia. Apesar de terem sido escritas e publicadas separadamente, revelam uma sequência e coerência interna como se fossem capítulos de uma mesma história, oscilatória entre o velho e o novo; a presença e a ausência; o sonho e a realidade; o mar e a terra. São histórias intimistas que fluem como o mar ondulado da sua infância, cujas ondas terminam inexoravelmente nos limites da praia da esperança. Parecem-nos sobretudo hinos à juventude e à feminilidade.
Mas o escritor não é novo nestas lides. Antes, em 2002, já nos brindara com “Os (Meus) Dias da Independência” um relato, em forma de diário, da sua vivência durante o período da independência, o livro que o lançou no domínio das letras e que há muito está esgotado, embora seja aguardada a sua reedição para breve. Em 2005, editou em livro, um conjunto de mais de 150 crónicas semanais iniciadas em 2003, escritas, quase todas elas, de Bissau mas também de Abidjan e Acra, num contacto regular e semanal entre o autor e os leitores, que foram sendo divulgadas num semanário de Luanda. O seu título é “Eleições em Tempo de Cólera” e nasceu sob a chancela da Editora Chá de Caxinde”. Como o autor explica na sua nota prévia, “esse título é inspirado no romance de Gabriel Garcia Marquez, Amor em Tempo de Cólera, e pretende estabelecer uma associação de ideias entre os tempos de cólera que evocam a doença e epidemia mas também a ira, o ódio e finalmente também a solidariedade, a fraternidade e o amor”. Regressado a Angola em 2005 para trabalhar como consultor jurídico no processo de registo eleitoral, Onofre dos Santos deu ainda à estampa, em 2006, pela Editorial Nzila o “Registo Eleitoral – Legislação Anotada”.
O Conto da Sereia foi anteriormente lançado em Portugal, cuja apresentação foi da responsabilidade do Secretário-Geral da UCCLA, Victor Ramalho, num evento realizado a 6 de Junho, nas instalações da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP. Eis uma das suas declarações sobre o autor e a obra:“. Apaixonado por aquela imensa terra de África que é Angola, Onofre dos Santos leva-nos bem mais longe que as distâncias concretas do chão, através de uma viagem cheia de cores, ritmos e sedução por tempos que se cruzam e memórias que se inebriam de futuro”. E o próprio Onofre sobre o seu processo de escrita afirma “... fico com a sensação que estou a escrever uma história que se poderia, depois, num relance dizer que é afinal um romance... sobre mim mesmo, feito de uma certa saudade, não do passado que foi muito bom e até interessante, mas do futuro que ainda gostaria de conhecer... ou inventar... “. “Tenho mais alma de marinheiro”. É magistrado mas procura não viver numa “redoma de vidro”. Afirma que “se não tivesse optado pelo Direito, gostaria e ter sido explorador ou missionário, dada a atracção que sinto pelo horizonte longínquo”.
Vislumbra-se na sua produção literária, como fonte essencial, o seu passado pessoal e colectivo, com memórias, acontecimentos e particularidades. Faz dele a base para a construção de uma obra ficcional pelo que a narrativa do passado, constitui o seu exercício literário preferencial. Trata-se, deste modo de um texto literário notável por recorrer a uma memória pessoal, supostamente sem grande relevância. Contudo, a expressão da sua intimidade é nuclear e em termos discursivos, o texto expande-se de um sujeito de enunciação, que se toma a si mesmo como objecto de conhecimento. É uma auto-observação marcada por uma sinceridade, humildade e renúncia pessoal. Discorre do entendimento da sua personalidade um feixe de contradições e de paixões, pelo que resulta um estilo divagante e emocional na obra, consubstanciado num narrador autodiegético , que relata as suas próprias experiências como personagem central da história, na primeira pessoa gramatical, criando a coincidência entre narrador, protagonista e autor. Também é o seu próprio antagonista, numa divisão da personalidade e em confronto interno, nunca se sabendo quem é o vencedor. Na sequência narrativa o autor conta as histórias, num tom em que expõe a própria vida, como forma de explicar o passado, trazendo aspectos psicológicos para a narrativa com alguma ambiguidade, na medida em que o autor pode perfeitamente ficcionar passagens da sua vida.

A sua pena se socorre dos diferentes tempos para nos deslumbrar. Se o tempo cronológico é determinado pela sucessão temporal dos acontecimentos narrados, o tempo histórico irrompe com as referências aos momentos históricos em que a acções se desenrolam. Fluindo em consonância com o seu estado de espírito, se encontra o tempo psicológico sentido pela personagem. No tempo do discurso o narrador umas vezes escolhe relatar os acontecimentos por ordem linear, mas também recorre à analepse, com alteração da ordem temporal. O espaço físico primordial, quase sagrado até, é o mar, a praia, servindo de cenário à acção, onde as personagens se movem e os factos da narração se desenrolam. Os amigos e conselheiros se integram no ambiente social que ombreia com o espaço interior do protagonista, recheado de vivências, pensamentos e sentimentos.
Sem querer tirar-vos o prazer da descoberta da obra pela leitura, para nós O Conto da Sereia simboliza uma ode ao mar, à infinitude, à beleza feminina, ao amor e à paz, que se exprimem de diferentes maneiras. Através da suavidade e delicadeza da sua escrita em que a mulher é tratada como uma flor de porcelana, frágil e sensível. É elogiada a sua feminilidade, através de uma linguagem que valoriza o erotismo, mas não a sexualidade explícita ou vulgar. Para si, amar é uma eterna espera cuja felicidade advém de pequenos gestos. Mas também com uma faceta contemplativa, diria mesmo platónica, em que se ama o próprio amor. Estar apaixonado pode indiciar um modo de ser e estar na vida, que se completa com o encantamento da sereia, próxima mas distante. Presente também a outra vertente do amor, ligada à paz, à reconciliação das culturas e à integração entre o particular e o universal. Esta obra simboliza também o reencontro com o tempo perdido e à urgência do diálogo, sobretudo juvenil, já que o mesmo avança inexorável, escasseando para o muito que se tem a partilhar. A fuga no tempo, no mar e no facebook remete para a dificuldade de sustentar o real. É um homem só que necessita da irrupção do seu outro eu, afastado de si durante muito tempo. Muito honesto, junta a esta “limpeza interna” a obsessão pela limpeza exterior. E a identificação com o mar, sol, as estrelas, a “lua azul” configura a sua busca pelo infinito, manifesta também na ânsia de harmonia universal nestes “novos tempos de cólera”!
Lançamento do Livro “O Conto da Sereia” de ONOFRE DO SANTOS
Luanda, 23 de Setembro de 2012 na Universidade Lusíada - 18h30
Comentarios