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Porque hoje é domingo


Queiramos ou não, crentes ou não, hoje é o Dia do Senhor, Dominus em latim, de modo que neste dia não fazemos todos o que nos outros dias da semana somos obrigados a fazer. Muitos dizem, e bem, que é um direito fundamental, mas ele remonta, em santa verdade, ao dia em que o próprio Criador pôs de lado a enxada, deixou de se ocupar da lavra e se sentou à sombra a contemplar a obra feita até à data. Assevera a Bíblia que rejubilou: “tudo aquilo que tinha feito era bom”.

Uma dúvida, porém, o assaltou vendo vaguear pela seara o homem que ele criara, há dois dias apenas, invejando todos os animais domésticos e selvagens, os próprios peixes do mar e as aves do céu... namorando e cumprindo tranquilamente e sem vergonha a vontade divina. Admitiu então Deus que talvez se tivesse precipitado, quando na manhã do quinto dia, criara duma assentada toda a espécie de seres vivos para livremente se multiplicarem! A extravagância de fazer uma obra prima surpreendera-o já ao entardecer, quando lhe surgiu a ideia de criar um outro ser, que ele modelaria à sua imagem e semelhança. Estava cansado, é certo, mas a imaginação fértil e artística imensa interrompeu-lhe como um raio inesperado o seu justo repouso. Um pequeno fio de água corria junto aos seus pés calejados e, rapidamente, com a velocidade de quem apanha um insecto incómodo em pleno voo, recolheu uma porção daquele cristal sem cor nem forma, amassando com ele um pouco da terra estrumada que remexia com um pé para se entreter e refrescar. Foi obra de um instante... embora com algumas inevitáveis imperfeições pois que o homem, para todos os efeitos, foi criado numa hora extraordinária. Agora, porém, contemplando-o solitário, Deus dava-se que tendo ele sido feito à sua semelhança ele era dotado de razão, não sendo necessário esperar pelas Teorias da Razão Pura e da Razão Prática de Kant para se interrogar para que fora ele feito, afinal, sem a capacidade de se multiplicar! Deus deu uma palmada na testa... esquecera que era monoteísta... e esta coisa de ser feito à sua imagem e semelhança complicara tudo. Depois pensou melhor... também Ele teria um filho... ser eterno tem este problema de tudo ser presente ao mesmo tempo.... olhou complacente o Sol a esconder-se, a lua a despontar e Deus sorriu (maliciosamente? A Bíblia não o diz) que era altura de inventar uma coisa que não era uma coisa, uma coisa que não se visse mas se sentisse, que transbordasse... que nos mudasse espiritual e biologicamente.... olhou os outros animais fazendo amor com toda a desfaçatez com a mesma naturalidade que iam ao rio saciar a sede... O amor do homem e da sua companheira teria de ser diferente.... Quem disse que era fácil ser semelhante a Deus todo Poderoso? É que não basta poder fazer tudo o que se quer ou dá na gana... o Homem deverá fazer tudo com divina perfeição, e esse amor que ele buscará sempre terá de ser como o fogo que faz arder a floresta, como a água do rio que desde a mais alta montanha corre sinuosamente até chegar à foz, tem que ser, finalmente como a terra para criar raízes, doces ou amargas que hão-de crescer até ao céu e dar frutos: uns bons, outros maus. Por isso, o Homem, que à semelhança de Deus se poderia limitar aos 10 mandamentos pessoalmente dados a Moisés ou aos 2 que o seu próprio Filho, enviado dois mil anos depois, num cúmulo de racionalidade, resumiu, acabará, como todos sabemos, a promulgar vastos e detalhados direitos fundamentais e cartas dos povos, não para se amarem mais como seria desejável, mas para não se acabarem matando uns aos outros. Por ironia do destino, quase sempre por causa de Deus que afinal, nalgum ponto da caminhada do homem, se terá esquecido de algo importante. Que Ele próprio, aparentemente, se não recorda... pois não é ele aquele velhinho de longas barbas e um pouco trôpego a quem chamamos o Pai Eterno? É tão difícil seguir-lhe as pegadas neste deserto que o vento que ninguém sabe de onde vem ou para onde vai muda as pegadas todas as noites antes de se fazer novo dia! Até que ao longe se divisa brilhante uma nova sarça ardente... ou será antes o letreiro luminoso de um casino de Las Vegas? Ela não parece uma miragem e de facto parece acenar e interpelar: “Não faças ao outro o que não queres que te façam ti próprio”. Mas qual outro? Eu estou aqui sozinho... perdido, sem inimigo, pagão ou ateu para amar... como eu queria ser amado... Ouviu-se, então uma voz de escárnio, misturada ao vento misterioso do deserto... “esqueci-me de te dizer, meu amigo, que amar o outro como a ti mesmo é uma treta... isso já foi inventado por uma quantidade interminável de bons pensadores antes e depois de Eu lhes enviar o meu próprio filho... e o resultado está à vista! Serás tu por acaso capaz de sofrer e morrer por mim? Ou o que julgas tu que é o amor?”

Embora vendo que desta vez era a sério e o Velho não estava com paciência para colóquios paradisíacos, o Homem tentou ainda o seu velho truque:

Senhor, uma coisa de cada vez... deixa-me por agora chegar àquele casino e tudo o que ganhar darei aos pobres e farei toda a gente feliz, a minha família, até os meus inimigos, juro que até os que te perseguem Senhor.... e Tu serás testemunha do meu amor....

Vai sim meu filho, quem sou Eu para te dizer o que não hás-de fazer? Não te dei Eu o livre arbítrio? Olha, já agora, a maçã dourada continua lá, assim como a mulher à tua espera... e com a serpente como croupier... não tens como não falhar... outra vez!

Adão e Eva da autoria de Lucas Cranach l'Ancien

(1472-1553)

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