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As calemas vêm aí


Só o estrondo das vagas contra os rochedos, lá fora, fazia adivinhar a calema que se aproximava. Era abril, tempo ainda das calemas. A última fora em fevereiro e durara três dias. As vagas conseguiram ultrapassar a barreira dos rochedos e dos recifes, chegaram a lamber as bases dos morros. Levaram areia e argila, restos de peixes e caranguejos, trouxeram areia limpa. A Natureza a ocupar-se da minha praia, impedindo-a de se poluir, pensou o homem.” (Pepetela, A Geração da Utopia)

Calema, palavra linda, tão melodiosa como perigosa, pois tal como a ondulação lenta e à distância do corpo de uma mulher, ela traz consigo a tempestade... do Kimbundu Kalemba.... um termo adocicado pela prática do linguajar de tanta gente de diferente origem, sempre fixado nesse bicho perigoso que é o mar, ora manso como um cordeiro, ora agitado e furioso como um touro chispando ondas que na arrebentação da praia se erguem como o capelo de uma cobra gigantesca que quando levanta a cabeça para dar o bote em cima de nós já não há salvação a não ser na desastrada fuga que a espuma nos arrasta entre destroços, conchas, remoinhos de areia e restos de redes abandonadas.

Mas se Pepetela fala em termos quase bíblicos nos sinais da calema na sua “Geração da Utopia” no início ao seu capítulo “O Polvo”, a calema de que vos falo e também deu uns primeiros sinais em Fevereiro e vai avolumar-se enquanto durar o equinócio, é outra... a calema eleitoral, aquela que ganhando forma de serpente vai devorando sensações, sentimentos, emoções e convicções que rebentam com mais ou menos ruído seja contra rochedos inamovíveis, seja morrendo em suspiros sussurrados pela praia arenosa que nesta época de cio conquista impiedosamente. É o tempo do equinócio que, não por acaso, tem na sua origem a palavra igualdade... aequus (igual) e nox (noite), ou seja quando a duração do tempo escuro da noite iguala o tempo luminoso do dia. A calema evoca, assim, simultaneamente os dois lados da Força, o dark side e o light side... os seus sabres de luz que se digladiam numa galáxia distante, entre o Bem e o Mal. Se tudo isto é simbólico, a verdade é que, andando junto ao mar, todos sentimos esse marulhar profundo e só mesmo quem fica em casa de janelas fechadas evita os salpicos das ondas furiosas que fustigam a costa. Vem aí uma maré a que chamamos eleições, um período que deverá ser equitativo, quando o céu ficará branco de papelinhos que todos terão o direito de agarrar mas que só os próprios, assestando bem os óculos ou aproximando-os dos olhos lerão os nomes neles inscritos antes de os depositar nas urnas que durante algumas horas guardarão o seu segredo. As autoridades competentes e as mídia anunciarão com desejável frequência o registo da meteorologia, os mais ousados farão previsões, mas este é ainda o momento do cidadão se registar, mesmo que tenha de ressuscitar da sua letargia ou retransumar lá onde ele esteja, para que o seu papelinho não vá com o vento para lá do equador.

Vamos aguardar com a natural inquietação de quem sabe o que é uma boa calema, o dia em que o Light Side da Força anunciar quantos são os eleitores que sobreviveram ao seu registo de 2005, e de 2008... e quantos atingiram a idade para enfrentar as ondas alterosas da maré de sizígia, essa maré viva resultado da nova conjunção ao sol e da lua... esses astros que nos comandam mais do que desejaríamos...

Quem anda no mar há tanto tempo sabe como a paciência é a mais preciosa das virtudes... e nós angolanos sabemos o que isso é... afinal já fomos informados há algum tempo, pelo censo, quantos somos exactamente, até as idades temos, quais são os nossos agregados familiares e onde exactamente estamos, pelo menos neste equinócio... mas nisto de calemas é sempre preciso lembrar que há ir e votar....

Por isso, cá fico no meu posto, fumando o meu cachimbo (metafórico) como o Velho daquela história de Hemingway, (O Velho e o Mar) que gostaria de brilhar aos olhos da criança que significava o futuro, mas termina, lembrando resignado a lição de uma longa vida de que há mais marés que marinheiros!

Pintura de Carlos Barros, Comissão Eleitoral Guiné-Bissau

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