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Como matar um juiz iníquo

  • Onofre Santos
  • 18 de mar. de 2017
  • 5 min de leitura

Matar um juiz que se preparava para retirar a guarda de um filho a uma mãe, apenas para satisfazer as cumplicidades mundanas do seu círculo de amigos, de que o advogado do pai do menor que fazia parte, pode ou ou não ser um acto meritório? Mais do que isso, não poderá esse acto significar alguma espécie de redenção?

O jovem professor de filosofia, convivendo com mal disfarçada indiferença com uma dependência do álcool e um transtorno obsessivo compulsivo, estava a léguas de imaginar que ia ao encontro da resposta àquela questão ao descer da camionete que o transportara até uma pequena cidade do interior dos Estados Unidos, para reger um curso de Verão.

Nem a luz ou a folhagem transbordante de vida, anunciando uma estação propícia à paz e ao enamoramento, podiam contrastar mais com a tristeza e a desilusão que o professor reflectia nas suas aulas, desafiando os alunos a entender o fundamentalismo de Kant que não admitia a mentira em caso absolutamente nenhum no “terrível mundo real”em que vivemos. Imaginem, perguntava mordaz, que estavam na casa onde se abrigava Anne Frank e eram invadidos pela polícia nazi em busca da jovem. Denunciariam, por amor à verdade, que ela estava escondida no sótão? Pelo contrário, o atormentado professor defendia o livre arbítrio, negando que a justiça resultasse de avaliações morais, porque estas mesmas avaliações têm a sua origem na paixão humana.

Esta é a base do enredo do filme “O Homem Irracional” que ontem não resisti a ver mais uma vez. Tudo começa com os arroubos amorosos de duas mulheres diferentes, uma mais velha, também professora na escola, mas disposta a deixar tudo para seguir aquele estranho que inesperadamente aterrara naquele previsível ninho de cucos, e outra, uma aluna deslumbrada pela tristeza invencível do professor que ela por vaidade e enfatuação juvenil se dispunha de corpo e alma a transformar. Ambas chocaram no espesso muro da indiferença sexual que o professor, com alguma envergonhada relutância, confessara que o assombrava há mais de um ano. Tudo isso, porém, pela mera circunstância de uma fortuita conversa ouvida por mero acaso pelo professor e a sua aluna numa mesa de café. Ambos se aperceberam com aflição do drama de uma pobre mulher que ameaçada de divórcio iria perder a guarda do seu único filho por cumplicidade indesculpável do juiz local. Esse é o momento que muda tudo, como um milagre, uma visão ou uma ordem divina. Provavelmente, o professor de filosofia, admirador de Dostoievski, naquele mesmo instante terá vestido a pele de Raskólnikov que vive obcecado com a ideia de fazer alguma coisa importante que mudasse a sua pobre vida. Um dia, Raskólnikov decide matar uma velha agiota, um crime justificado aos seus olhos porque, ao matá-la, estaria livrando o mundo de uma pessoa ordinária que apenas causa mal às outras. O mesmo exactamente pensou o professor a respeito do juiz Spangler, com a vantagem de ter entre mãos não só um crime justo, como um crime perfeito, porque ninguém o poderia ligar ao homicídio. Lembrando-se das suas grandes frases durante as aulas de filosofia, mais importante do que andarmos por aí a lamentar-nos, é passar à acção.

Essa sua determinação que naturalmente não partilhou com ninguém, teve desde logo o condão de visivelmente alterar a sua existência macambúzia, os olhos voltaram a ganhar o brilho esquecido de outrora, sentindo-se feliz como se tivesse encontrado, como tudo indicava que encontrara, um novo propósito para a sua apagada existência.

Até o seu bloqueio sexual, causa de embaraço com a atiradiça e madura professora cansada da rotina com um marido que só fazia palestras e muito convenientemente a deixava entregue às suas fantasias, e a sua persistente relutância em envolver-se com a mais jovem e talentosa aluna da turma, se desvaneceu sem necessidade do Cialis, já que o seu problema, como ficou amplamente demonstrado, era apenas psicossomático. A libertação espiritual abriu-o à luxúria de que tinha saudades e, sem quaisquer escrúpulos, tanto satisfazia as utopias da insaciável professora, como os mais ingénuos devaneios da sua mais aplicada aluna. Não tendo a mínima ligação ao juiz nem à mãe desprotegida, passou a estudar os hábitos e a rotina diária do juiz Spangler, o seu jogging matinal, a paragem no mesmo banco do jardim para sorver por uma palhinha o mesmo sumo retemperador, enquanto lia no jornal as notícias do dia. Metodicamente, o professor apenas teve que se dar ao trabalho prévio de furtar uma dose de cianeto do laboratório da Universidade, comprar exactamente o mesmo sumo do juiz e uma idêntica palhinha, sentar-se por um instante no banco ao seu lado para, no momento crucial em que o juiz abria o jornal e mergulhava no noticiário, limitar-se a trocar as embalagens do sumo e continuar o seu passeio pelo parque. Nem precisou de olhar para traz, para confirmar como depois de satisfeita a curiosidade das principais notícias e dava umas chupadas no sumo envenenado, desfalecia em segundos, vítima aparente de ataque cardíaco fulminante.

A euforia por ter praticado um crime perfeito, de que ninguém podia suspeitar, muito menos a sua adorada aluna, não o eximiu, todavia, de a convidar alegremente para festejar. Afinal, Deus não dorme e não há nenhuma reprovação em festejar o triunfo do bem sobre o mal. A felicidade daquela mãe a quem o filho não seria roubado!

Voltando, porém, a Dostoievski e ao “Crime e Castigo”, essas setecentas páginas que hoje infelizmente quase ninguém lê, a não ser apenas para aprender a escrever, após o assassinato, Raskólnikov é atacado pelo remorso, e acaba por se entregar à polícia. Não foi esse o caso do professor de filosofia de Woody Allen que, inebriado pela paixão de duas mulheres tão diferentes proporcionando-lhe agora uma nova obsessão compulsiva substituindo o seu anterior e maléfico padecimento, se preparava para começar uma vida excitante não importava onde.

Estava, porém, reservado ao professor, uma última lição, não da bela professora que não trocaria o seu amor por qualquer sentimento de culpa, mas da instintiva e jovem aluna que, lenta e dolorosamente se despiu da fascinação em que se deixara envolver, como um véu que não a deixara ver, como realmente era, o seu desesperado professor . Também ela seria capaz de fugir com ele ou, pelo menos, seria incapaz de o denunciar. Mas nunca depois de ter sido preso e arrastado para o cárcere um inocente acabado de ser identificado como autor do hediondo crime praticado sobre um magistrado de tão respeitável comunidade. O final do filme não desmerece do inspirador Dostoievski, ficando no ar, sem poder já chegar aos ouvidos do seu professor de filosofia, a pergunta que era bem a sua resposta à razão e à paixão dos filósofos que desde sempre se esforçam em distinguir entre o bem e o mal.... Mesmo num terrível mundo real como o nosso, alguém tem o direito de decidir quem vive ou quem morre? E quando a razão é comandada pela paixão quem trava a mão do justiceiro? O professor, mesmo não arrependido de ter matado o juiz, como Raskólnikov se arrependera de matar a agiota, não pôde furtar-e a admitir que uma morte abre o caminho a outras... e que a justiça feita pelas próprias mãos torna-nos tão iníquos como os que desejamos punir.

 
 
 

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