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O espelho mágico


Alice era uma menina descuidada e despreocupada com o tempo... na verdade, o tempo e os calendários foram a coisa mais terrível jamais inventada para nos tirar a melhor parte da felicidade, pensava ela, descuidada no seu belo jardim.... Até porque o tempo só nos trás a idade e com ela todo esse conjunto horrível de realidades de que gostaríamos de escapar, nem que nos metêssemos por algum buraco que nos levasse mesmo aos trambolhões, até um mundo diferente!

Melhor do que ninguém o sabia o bem apessoado coelho branco, e olhando inquieto e constantemente para o seu relógio de bolso, estremecendo as suas narinas cor de rosa que irresistivelmente atraíram Alice, lançando-a em sua perseguição apenas escutando ao longe as suas palavras de ordem: “É tarde, é tarde, é tarde....” Foi nesse momento que zás, Alice escorregou num buraco enorme meio dissimulado entre as raízes de uma árvore deslizando sem qualquer possibilidade de resistência até um subterrâneo imenso (“Underland”) que por ironia do destino se iria converter para ela no País das Maravilhas (“Wonderland”). Aí descobriu todos os amigos e alguns sérios inimigos que teve de enfrentar, embora tudo aquilo lhe parecesse uma loucura pegada. O pai não imagina, dizia ela quando teve ocasião de lhe confidenciar tudo com os mais pequenos pormenores. O pai ouviu-a, com mais bonomia que benevolência e, mais tarde, convenceu-a de que era natural as pessoas sonharem, mesmo acordadas, pois, com ele acontecera o mesmo, há muitos, muitos anos! Mas tu sabes, meu amor, o tempo é um personagem inevitável, com quem temos de conviver e acredita minha querida, ele até pode ser agradável se o tratarmos com algum sentido de oportunidade. Por exemplo, que tal aproveitarmos estas férias para fazermos uma viagem de barco, vais adorar o mar... irás conhecer outras terras de maravilha e fazer novos amigos. E assim foi. Até que um dia, já com mais alguns anos, Alice deu com um espelho que em segredo alguém lhe disse que era mágico! Mas haverá algum que o não seja, duplicando quem somos e reflectindo a nossa imagem que vemos com os nossos olhos do rosto, por vezes com os olhos da alma? Alice não esquecera os seus amigos e achava que a história das suas aventuras no País das Maravilhas ainda não tinha terminado. Deixara muitas coisas por resolver... Sobretudo, depois de tantos anos, queria saber o que acontecera com o Chapeleiro e com os outros, é claro! E se metesse um pé nesta superfície esmaltada como uma cortina de água tranquila e tentasse passar para o outro lado? Que custava tentar?

Ingmar Bergman, o cineasta, diferentemente de Lewis Carroll o autor genial de Alice, deu também muita importância ao espelho e ao tempo como se fossem dois personagens em constante cumplicidade. Há um filme de Bergman, “Gritos e Sussurros”, em que o médico amigo de Inês, que sabe que está a morrer de uma doença incurável a deixa ver-se ao espelho enquanto lhe murmura amorosamente: “Olha para ti ao espelho. Estás linda. Talvez, ainda mais linda que no teu outro tempo. Mas mudaste muito”. Ainda mais dramaticamente, em “Morangos Silvestres”, um velho professor, entretendo ainda ilusões amorosas com Mariana que o acompanha, está recostado entre as silvas, saboreando o calor do verão sueco e adormece vendo em sonhos aparecer Sara, o amor da sua juventude, com um espelho na mão, aproximando-o do seu rosto. Meio estremunhado, ele resiste e afasta os morangos que o enleiam com o seu perfume, procurando tão instintivamente e desesperadamente fugir da percepção daquilo em que se tornou que a emoção o despertou do seu devaneio, encarando Mariana que o ajuda a levantar-se. Repara que ele tem um espelho na mão e adivinha o que lhe terá passado pela consciência. “O espelho é uma abertura na parede da realidade” diz-lhe ela, e o velho professor sabe que já é demasiado tarde para espreitar.

Alice, também já com outra idade, foi certamente mais afoita e não hesitou em regressar ao País das Maravilhas. Lá voltou a encontrar os seus amigos e tornou a enfrentar novos e antigos inimigos. Sobretudo ela queria salvar o Chapeleiro Maluco de quem ela guardava a imagem romântica de príncipe encantado. Encontrou-o cansado, destroçado, e tão diferente daquele homem de olhos maliciosos, sempre brilhando debaixo da aba do seu chapéu de coco. O Tempo, culpou Alice, é tudo obra do Tempo e do seu maldito cronómetro.... Contaminada pela loucura do País, Alice lança-se em perseguição desse novo personagem, tão diferente do coelho branco, fugidio mas simpático... e encontra o Tempo melancolicamente curvado à volta das suas misteriosas ferramentas e engrenagens. Aproveitando-se da sua distracção e lassidão arrebata-lhe o cronómetro que lhe permitirá andar com o tempo para trás... Poderá assim resolver todas as injustiças entretanto cometidas, denunciar as mentiras injustas que amarguravam de morte os seus amigos..... Quase o conseguiu... o julgamento foi marcado, os culpados de cabeça baixa, preparavam-se para aceitar o veredicto quando o Tempo, irrompendo traiçoeiramente pela sala de audiências arrebatou o cronómetro mãos de Alice .... que de repente se viu novamente em frente do espelho que não sabia se alguma vez tinha cruzado, como quem pudesse atravessar uma parede para ver tudo o que ela esconde ou oculta. Faltava-lhe o pai para lhe colocar a mão sobre o ombro e consolá-la como quando era a sua menina pequenina. Ia voltar as costas triste quando o viu, o pai, sorridente como sempre... “afinal será mágico este espelho?”

“Minha querida Alice, todos os espelhos são mágicos desde que não nos deixemos enganar por eles... sabes, há uma coisa que infelizmente não podemos fazer, não podemos mudar o tempo passado... Mas estamos sempre a tempo de aprender com os nossos erros e, com os erros dos outros... e ainda a tempo de fazermos as coisas certas.

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