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Teremos sempre Paris


Fiquei tão encantado com a ilustração do meu último “post” que passei a usá-lo como símbolo do meu site “dark horse tail”. Não por se tratar de um cavalo com a cauda (tail) empinada a lembrar que tail na língua inglesa se pronuncia como tale (história), mas porque sinto que nenhuma outra gravura retrataria melhor os meus dias de cavalgada pelo deserto em que trazia comigo no alforge dois livros apenas que todos os dias abria ao parar junto de algum abrigo, fosse ao pino cruel do sol ou ao anoitecer gozando a frescura que sempre ressuma da água que corre subterrânea pela sinuosidade arenosa de um rio seco. Nesses instantes de solidão enquanto o meu cavalo ruminava restos de raízes esperando pela margem do rio a chegada de alguma chuva, eu acendia a minha inseparável lamparina que cintilava como uma estrela pequenina que por magia descesse do céu até ao alcance da minha mão.

Um dos livros, era o Livro Sagrado, cujas profecias e juízos sempre me exortavam a prosseguir a minha caminhada e o outro era um livro com todas as suas páginas em branco. Este era o meu preferido e aquele que na realidade tornava a minha cavalgada mais ansiosa, desejando ardentemente o momento de descer da minha montada, livrar-me do rolo de linho que me cobria a cabeça para me proteger do sol escaldante, mas com o qual depois enxugava a testa e limpava as mãos depois de as purificar na areia sedosa do deserto. Na verdade, o livro das revelações, assim se chamava, ainda que o título não estivesse sempre visível, tinha o dom de fazer transparecer, contra a luz, numa caligrafia que só podia ter saído das mãos de Deus, o que eu tinha no mais fundo da minha alma. Eu seguia cada palavra com o meu dedo ressequido como se estivesse a imitar o gesto divino de escrever..... com a humildade de um sábio do templo de Jerusalém Tudo isso aconteceu há muito tempo, há tanto que já nem sei realmente dizer quanto, pois, um dia no deserto é sempre igual ao outro e ao que vem a seguir e, assim, o tempo acaba por deixar de ter qualquer significado. Mas será impossível esquecê-lo!

O que me aconteceu? Talvez explique noutra altura. Hoje, apenas queria partilhar a alegria das lembranças que aquele cavalo de rabo levantado e de galope desengonçado me trouxe à memória. Um tempo em que tive uma outra vida e perseguia o rasto de Deus, seguindo as suas pegadas pelo deserto fora, embora soletrando palavras que talvez só os cegos pudessem ler. O que vos posso afiançar é que mesmo coisas antigas, como uma joia rara, podem ser imperecíveis. Perdoem-me que neste momento, ao endireitar a gravata que decora a minha nova vida, me sinta como Rick, o dono do café em Casablanca que trocara a vida ao lado do seu grande amor, forçando a sua partida ao lado do seu marido, o resistente Victor Laszlo, no último avião nocturno para Lisboa, contrariando no último momento a oportunidade de partirem apenas os dois amantes em direcção à felicidade em que ainda na véspera acreditavam. Ouvindo impassível a interrogação desesperada de Lisa, condenada a seguir viagem sem o seu amor, reencontrado para logo o perder: “E nós, Rick, qual será o nosso futuro?” A resposta veio célere como se procurasse adiantar-se ao gemido implacável das hélices do aeroplano anunciando uma separação definitiva: “Nós teremos sempre Paris”.

Como eu terei sempre as areias do deserto rodopiando com o vento e com o galopar incessante do meu cavalo... cansado e velho mas sempre com uma “tale” para desvendar no meu livro das revelações.


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