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Aprendendo a morrer e a beijar


O "Moninhas" foi o amigo mais íntimo de toda a minha vida. Como se costuma dizer, a gente não escolhe a família mas escolhe os amigos, isto para dizer que as conversas que mantive com ele ao longo de anos e as aventuras que ambos vivemos, seria incapaz de as ter com os meus irmãos. Desde sempre morámos perto e também éramos próximos no Liceu Salvador Correia embora ele tivesse uns dois anos mais. Foi talvez o facto de termos colaborado na redacção de O Estudante que nos permitiu o arrojo de nos inscrevermos em 1957 no primeiro curso elementar de jornalismo alguma vez realizado em Angola ou em Portugal. Durante mais de um ano, com professores reputados em matérias de composição, de reportagem, de fotografia incluindo a revelação na câmara escura onde só brilhava uma inquietante luz vermelha, para além de português, de história, de geografia e sei lá que disciplinas mais, então consideradas indispensáveis para a arte da comunicação. Desse curso fizeram parte nomes já célebres da época, como Ferreira da Costa, director, jornalista e escritor, que era o principal professor, mas sobretudo nomes que se tornaram famosos depois nas estações de rádio e de televisão, aquém e além mar. Um dos alunos mais aplicados e hoje talvez o sobrevivente, mais antigo, foi o Jaime Araújo de quem desde então me tornei um admirador, sendo um dos personagens mais importantes do livro que vou lançar para a semana, contando esperançosamente com a sua presença. Além de que o Jaime ter sido comigo um dos grandes amigos e companheiros do "Moninhas".

Mas o que vos queria contar é que um dia, na última vez em que o "Moninhas" e eu nos encontrámos em Luanda, ele pediu-me para parar à porta do Alto das Cruzes. Eu sabia que ele tinha um irmão ali sepultado, também nosso colega no liceu, um pouco mais adiantado, e recordo a comoção que perpassou por todos os estudantes e professores pelo modo fulminante como desapareceu do nosso convívio. Desliguei a música e parei o carro e lá fomos em silêncio, ao lado um do outro, seguindo logo pela primeira vereda à direita de quem entra no cemitério. Era um "Moninhas" completamente diferente daquele que eu, por uma espécie de associação ao contrário, me veio à ideia, quando muitos anos atrás me maravilhara, ao confidenciar-me no meio de um turbilhão de gargalhadas como tinha passado horas a beijar uma namoradinha , contando-me como se fosse uma revelação de outro mundo, como lhe metia a língua na boca, ali mesmo na varanda, não muito longe do radar da D. Elisa, atentíssima a tudo o que se passava naquela casa. Eu bebia cada palavra dele enquanto se rebolava de riso não sei se tanto pela descrição patética da apaixonada enjoadíssima de tanto "linguado", se de troça da minha absoluta ingenuidade e ignorância. O que me deixava perplexo era que eu sempre me havia julgado apaixonado pelas raparigas mais lindas que passaram pelo colégio e mais tarde pelo liceu, mas os meus sonhos de amor nunca incluíam mais do que uma troca de olhares, embora o mundo e tudo o resto me parecesse menos importante que algum olhar que me parecesse devolvido na mesma sintonia. Alguns raros amigos ainda as recordam, creio que estão todas bem essas minhas queridas colegas de tempos tão antigos, mas se eu as citasse ainda me arriscaria a ouvir, mesmo fora de tempo, umas sonoras gargalhadas, provavelmente porque todos eles, não tendo menos gosto do que eu, calculo retrospectivamente e sem sombra de ressentimento, que não se contentavam com olhares mais ou menos melosos como os meus. Uma delas, infelizmente, soube há poucos meses e pelos jornais que desapareceu. Creio, modéstia à parte, que a consegui descrever melhor do que ninguém no meu conto "O meu amor de celuloide" que aparece na minha primeira colectânea "O Conto da Sereia". Ela frequentara o quinto ano do liceu, estávamos já em férias, e ela também apareceu no já demolido edifício ao alto da calçada de Santo António para se inscrever também no tal curso de jornalismo. Não sei se a sua ou a minha vida poderia ter sido diferente caso ela pudesse ter frequentado o curso, mas o seu destino foi seguir o pai, distinto oficial de marinha e comandante do porto de Luanda a quem outra missão havia sido confiada. Talvez naquela altura, os ensinamentos do "Moninhas" fossem capazes de surtir algum efeito qualitativo na expressão dos meus sentimentos. Voltei-a a encontrar anos depois no écran, artista de cinema, lindíssima, mas para mim nunca tão deslumbrante como eu a vi velejando na baía de Luanda, fotografada apenas pelos pelos meus olhos que nenhuma câmara cinematográfica poderia captar.

Quando, depois de terminados os meus estudos finalmente voltei para Luanda, deixando para traz o "Moninhas" cada vez melhor professor na arte de Ovídio, decidi mudar de atitude e de comportamento e colocar um ponto final no meu ridículo jejum amoroso, pela via mais legal, propondo-me ir casar a Portugal com uma prima que eu conhecia desde a infância, com um fraquinho por mim e um sorriso tão bonito que logo eu fantasiei como a mulher da minha vida, em substituição de todas as outras já metamorfoseadas em fotografias e cartas que mandaria para o fundo da gaveta ou para o cesto dos papéis, senão por desforço, por um encapotado sentido de algum despeito.

Distariam apenas alguns meses até ao início da minha vida amorosa que, naturalmente, só podia ser inaugurada com aqueles beijos abrasadores que o "Moninhas" me deixara gravados na mente para todo o sempre. Para quem esperara tanto era quase indiferente a espera. Da mesma opinião não era, porém, uma jovem morena de olhos verdes que trabalhava no escritório onde eu começara a exercer. Tudo começou com uns rodeios e uns convites para ver o pôr do sol no fundo da ilha. Gostava de conversar com ela, ver os seus cabelos ao vento no meu MG descapotável. Ela não acreditava e ria como louca quando eu lhe confidenciava que a três semanas do meu casamento nunca beijara uma mulher. A ponta da ilha, naquele tempo, ao fim do dia, estava sempre coalhada de carrinhos parados com namorados furtivos e eu não conseguia vencer um estranho embaraço e até um aperto no coração, pois logo me sentiria culpado de me imaginar em tais situações. Era tal o meu medo, agora o confesso, mas ao mesmo tempo já irreprimível o desejo de pôr em prática toda a teoria durante anos absorvida, que um belo dia rumei até à Barra do Cuanza, a mais de 60 quilómetros da cidade, distância avaliada como suficiente na minha cabeça, para em plena segurança, dar finalmente o meu primeiro beijo na boca.

Agora, no cemitério do Alto das Cruzes, caminhando com o meu amigo envelhecido e adoentado, as lembranças que por alguns instantes me fizeram sorrir, desvaneceram-se como se tudo fosse produto de imaginação infantil, ao estacamos junto de um pequeno jazigo com um pináculo e uma inscrição na base. Leu-a para mim e eu pensei que só poderia ter sido para lembrar a Mãe a verdadeira razão porque havíamos ido até ali. "A minha Mãe não compreendeu até ao fim dos seus dias, e morreu muito velhinha, como pôde ter perdido aquele filho. Foi ela que escreveu as palavras que quis que aqui ficassem gravadas, mas que ela me repetiu, vezes sem conta ... É como se a estivesse a ouvir : "a sua morte foi um mistério". Afinal, a D. Eliza fora a mulher que o meu amigo "Moninhas" amara mais do ninguém e do que tudo na vida. Mais do que visitar o irmão, de que mal se lembraria, meio século depois, ele veio até ali para mais uma vez para ouvir a sua voz e, talvez, para lhe dizer que a vez dele estava próxima, sem mistério algum.

Leva muito tempo a aprender a morrer - muito mais que aprender a dar o primeiro beijo.

Post scriptum

O filho mais velho do "Moninhas" tem o mesmo nome do Dadá e é o primeiro antigo aluno da Nova School of Business and Economics a ocupar o cargo de diretor – Daniel Traça foi eleito diretor da Nova SBE, depois de acumular funções como diretor-adjunto e professor da escola desde 2009. Daniel Traça licenciou-se em Economia na Universidade Nova de Lisboa em 1990. Após o doutoramento na Universidade de Columbia (Nova Iorque), foi professor no INSEAD (França e Singapura) e na Solvay Brussels School (Bélgica).

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