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Lantejoulas ao espelho


A inveja que eu tenho do meu espelho não tem na verdade explicação, mas mentiria se dissesse que não lhe dedico um inconfessável ressentimento, quando ao fim do dia ele apenas me devolve uma expressão triste, onde nem um sorriso floresce no pântano verde do meu rosto macilento, os ombros descaídos, a tristeza do pijama às riscas que mais parece o trajo de um palhaço pobre ensaiando uma quase esquecida entrada em cena.

Particularmente não suporto as minúsculas lantejoulas que vejo brilhar como estrelas caídas no tapete colorido diante do espelho que imagino se desprenderam de um vestido demasiado justo de cetim, rodando diante dele. Um puro exercício de sedução que deduzo ocorreu ali mesmo diante daquela superfície polida de prata metalizada, insusceptível de reprodução. Considero isto uma injustiça, porque até mesmo uma imagem única captada pelo cristalino pode ser revista no fundo escuro da nossa visão depois de cerradas as pálpebras. Diante do espelho não há cortinas capazes repetirem o que foi visto ainda que por um breve instante e como uma fugidia sombra chinesa.

Resta o hábito entranhado da procura dos vestígios, a investigação dos indícios e a dedução lógica que aquelas mini-lantejoulas douradas conspicuamente dispersas no tapete diante do espelho provocantemente incitam. Com algum cuidado, a sua localização naquela superfície macia permite não só calcular o raio de cada movimento de rotação como o próprio frenesi de cada evolução. Num instante, o detective casual transforma-se num realizador cinematográfico acidental, como se olhos inspirados captando imagens em vertiginosa sucessão, fossem por si sós, capazes de produzirem uma rodagem perfeita, que tanto pudesse ser projectada em speed, como em câmara lenta, desprezando o anacronismo do espelho.

Na minha projecção favorita, em câmara lenta, posso mesmo detectar cada lantejoula ser projectada do cetim apertado e seguir a trajectória cintilante de cada uma delas como microscópicas estrelas cadentes até poisarem suavemente na tapeçaria, perante a impassibilidade do planeta dourado descrevendo lá no alto seus movimentos de rotação, os cabelos ondulando como as marés a cada volta em torno do seu eixo imaginário.

Não passará de uma conjectura, mas devo presumir que aquele vestido de lantejoulas não terá sido o único a ser experimentado e posso idealizar o planeta sedutor despojando-se da pele dourada e invejo mil vezes o espelho que, insensível, terá testemunhado o fenómeno astronómico de um planeta em transformação, como uma lua nova em que mal se vêm dois seios como dois sois apagados, até voltarem a refulgir sob uma pele prateada rodopiando no céu do meu quarto.

Não posso jurar, é claro, que durante a minha ausência, terá sido absolutamente assim, pois limitei-me a a deduzir pelos vislumbres quase imperceptíveis a um olhar menos treinado, que apenas cometi o crime de não estar por perto. Fenómenos solares como este são raros, uma vez em cada século, penso eu, mas posso estar errado.

Volto a debruçar-me sobre os fiapos do tapete e consigo pegar com a ponta dos dedos outras duas lantejoulas, desta vez prateadas, o que me encheu de auto-satisfação por confirmar a minha suspeita anterior. Tinha agora a certeza de que o planeta sob observação dedutiva tinha efectivamente mudado de pele estelar, revelando mistérios que estão para além de toda a contemplação espacial. Não pude deixar de enfrentar o espelho com alguma maledicência. Um espelho é um espelho, mas um cientista é cientista e este é capaz de ver, no presente ( e até no futuro) o que aconteceu não importa há quanto tempo, no passado.

Post Scriptum

Para os amigos que estejam em Luanda não esqueçam por favor Quarta-feira dia 12 as 18:30 na Universidade Lusíada o lançamento do meu livro DESCOMPASSO. Não se deixe iludir por este "post" de domingo para celebrar a juventude...


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