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A noite e os tambores


Há quinze anos, estava eu recolhido no Hotel 24 de Setembro numa das noites que se seguiram à realização das primeiras eleições democráticas na República da Guiné-Bissau e caía uma chuva torrencial que rufava como o primeiro andamento de uma sinfonia prenunciando outras vozes da natureza. Os raios revelavam silhuetas fantasmagóricas entre o arvoredo e a agitada cortina de brilhantes que o cobria, seguindo-se temíveis trovões que rugiam como leões à nossa volta. O amigo filósofo com quem partilhara a refeição nocturna e se ficara à conversa saboreando um digestivo local, baixou inesperadamente a voz para me fazer uma confidência: “Em África quando os tambores ressoam eles não mentem”. Surpreendido, perguntei quais tambores, pois até ali só ouvira o tamborilar furioso da chuva no zinco dos telhados e os trovões que estrelejavam como os pratos de uma orquestra em pleno concerto. Contou-me então em tom de segredo, mas gozando com prazer o meu espanto, que desde o princípio da noite os bombolons ainda não se tinham calado, transmitindo e retransmitindo a mensagem da “mudança” na Guiné-Bissau. Depois, já, não me pude alhear à magia daquele momento, apurando o ouvido como se voasse pela floresta imaginária captando as batidas que algures se repercutiam, de tabanca em tabanca, por todo o país dos balantas, manjacos, mancanhas e papeis. Afinal Nino Vieira sucederia a ele mesmo deixando Koumba Yalá em desespero de causa. Todavia, o povo fora chamado a dizer de sua justiça nas urnas e era evidente que uma mudança, ainda que diferente daquela por que muitos esperavam começou também na Guiné-Bissau e não necessariamente para melhor.

Dois anos antes em Angola, o Conselho Nacional de Eleições também tinha escolhido a figura de um tocador de tambor, o batuqueiro, para anunciar a realização das primeiras eleições multipartidárias, convocando os eleitores para o registo primeiro e para a votação depois. A mensagem a passar era a da realização de eleições justas e livres. Eleições em que todos pudessem votar e votar com inteira liberdade. Este era um objectivo que levara dezassete anos a cumprir. Por cumprir ficara no entanto o canto da batucada proclamando aos quatro ventos que Angola voltava a sorrir. Contudo, o que sobreveio foi o choro e o ranger dos dentes, a divisão do País e dos angolanos. Os campos que Deus nos deu continuaram por cultivar semeados de minas traiçoeiras que ainda hoje nos assustam. As cidades divididas e arruinadas. Uma guerra que, no entanto, e graças a Deus e à iluminação dos líderes de ambos os lados, terminou sem vencidos nem vencedores, embora deixando uma ferida que nem as eleições de 2008 e 2012 foram capazes de cicatrizar.

Hoje, perscrutando a noite em que os votos já foram contados e se procede aos primeiros apuramentos provisórios, pergunto-me se não se ouvirão de novo os tambores martelando incessantemente o clamor ritual da cura por que Angola há tanto tempo anseia.

Tal como naquela noite tempestuosa na Guiné, os tambores que hoje ressoam sobretudo na floresta da internet também anunciam a mudança, dando como certa uma alternância que, a não se concretizar, conduzirá ao clamor de fraude e de resultados manipulados. E não faltarão as prédicas dos apóstolos da democracia para quem esta só existe quando há um câmbio de partido no poder e apenas com maioria relativa que obrigue o Titular do Poder Executivo a negociar com outras forças parlamentares. Não falta quem sonhe com esse cenário! Qualquer outro, mesmo o mais previsível não passará de uma abominável encenação. No entanto, o processo eleitoral em Angola cabe a uma instituição – a CNE – da qual fazem parte representantes de todos os concorrentes eleitorais, e a votação é fiscalizada pelos respectivos delegados de lista. Todos os partidos políticos têm acesso às actas de cada contagem podendo confrontá-las com os resultados ainda provisórios que vão sendo anunciados.

Será, porém, que a maioria absoluta, que todos os políticos sem excepção almejam mas poucos alcançam, ainda por cima num regime presidencial não é democracia ou passa a ser uma democracia ditatorial, como já ouvi a propósito das democracias na Rússia, na Polónia, na Hungria e agora também na Venezuela e no Kenya?

Então que mudança?

Muitos dirão que uma mudança não pequena é a sucessão do Presidente da República. É verdade que pelo menos o estilo da governação será diferente e quem começa goza sempre do chamado estado de graça que é justo conceder a todo e qualquer novo governante eleito. Por outro lado, no Parlamento haverá novos Deputados e desta feita serão mais os Deputados da Oposição do que na anterior legislatura, o que certamente concorrerá para uma mudança de agenda mais rigorosa por parte do Poder Legislativo. De resto, as eleições são sempre uma gravidez de esperanças por cujo sucesso são responsáveis os partidos políticos que a propiciaram, animaram e tornaram possível. Se a responsabilidade principal pelo cumprimento das esperanças caberá ao partido que conquistar o Poder Executivo, ela é solidária relativamente aos partidos que fiquem na oposição, na proporção dos lugares que irão ocupar no outro Poder electivo, o Poder Legislativo. Sem esquecer a sociedade civil promotora e destinatária dessas mesmas esperanças que cada um dos Poderes electivos deve velar, tal qual a menina dos seus olhos.

Como o povo da Bíblia, libertado do jugo dos egípcios, os angolanos atravessaram o seu próprio deserto de 40 anos. Não faltaram os bezerros de ouro, nem as leis que se quebraram no escândalo de incumprimentos que a natureza humana sempre consente seja qual for o homem do leme e o partido em que se apoie. Também depois de Moisés veio Josué que “fez uma com o povo nova aliança e deu-lhe melhores leis e preceitos” (Livro de Josué, 24 ). Culminou este consenso com o compromisso entre o povo e o seu líder de todos mudarem de atitude, de volta à esperança nas promessas que os libertaram do Egipto, de volta à Terra da Promissão. “Depois (Josué) escreveu estas palavras no livro da Lei de Deus.” (Idem). Sabemos como esta mudança não impediu a reincidência na adoração dos falsos ídolos e de a paciência de Deus continuar a ser testada ao longo dos séculos.

Em Angola o tan-tan não pára de anunciar uma nova era política. Uma página que se volta no livro da nossa história... outra que se vai abrir. Quem a vai escrever?

Publicado no Semanário VANGUARDA de hoje

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