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O COMBOIO APITOU TRÊS VEZES


De repente, as nuvens avermelhadas de poeira da pradaria misturaram-se no ar com as ondas de fumaça expelidas pela velha locomotiva como o respirar ofegante de um dragão que tivesse sobrevivido à extinção. Na estação apinhada, uma pequena multidão aguardava impaciente e curiosa a chegada do novo Chefe da cidade. Quando o comboio apitou, anunciando a sua chegada triunfal como um hino de boas vindas, um grupo perfilado avançou algo desordenado ao longo da plataforma ao encontro do homem ansiosamente esperado . Aquela procissão improvisada foi travada pelas orlas de incenso exaladas pela máquina que estacara poderosa, deixando algo hesitante o homem que segurava com pompa e circunstância a almofada de rubro cetim onde refulgia como ouro uma simples estrela de latão. Quando um homem simples, de boa estatura e exibindo um sorriso enigmático emergiu à porta do comboio, envolto ainda da névoa húmida do resfolegar dos motores, todos os olhos ficaram vidrados nas coronhas de madre pérola que se destacavam de cada lado da sua cintura. Alheio a tanta curiosidade, o recém-chegado abanou desajeitadamente o chapéu, fosse para cumprimentar a multidão que o aguardava, fosse para afastar as réstias de fumarada que o não deixavam reconhecer ninguém. O que de certo modo tornava tudo mais fácil.

Iriam passar-se tempos de acção indescritível... já não era possível duvidar-se do acerto da opção de anos antes. Ao fim de cada dia em que zelosamente assegurava o sono tranquilo dos seus concidadãos, o homem escolhido, agora com os primeiros cabelos brancos, pendurava pesadamente num prego na parede do seu escritório, o célebre cinturão em cujos coldres se aninhavam os dois pássaros de fogo de plumas nacaradas sempre prontos a alçar voo, dependentes apenas de um gesto mais brusco ou precipitado. A culminar a rotina, retirava da lapela a estrela de latão, passando-a pela manga de alpaca para lhe manter o fulgor, depositando-a sobre os revólveres, repetindo o sorriso enigmático do primeiro dia.

Mais uma vez, o comboio voltou a apitar ufano, como uma trombeta de Jericó, anunciando uma nova era. Um tempo moderno, com novas regras e mais garantias de sossego e justiça para todos, estava a chegar. Tornou a encher-se a estação, milhares de bandeirinhas de todas as cores regurgitavam pelas praças e avenidas. Por todo o lado se ouvia cantar que os homens fizeram um acordo final, de acabar com a guerra e viver em amor.... Indiferente à euforia dominante, o homem de estrela ao peito, terminava a sua ronda, calcorreando vigilante becos e ruelas acompanhado a curta distancia por um tocador de viola que o seguia para todo lado como se fosse a própria sombra, a troco de uma moeda para um copo no bar, apenas para lhe afinar a voz... Apesar dos acordes melancólicos e da voz soar-lhe mais rouca que melodiosa, aquela canção meio desesperada dava-lhe sempre alento para prosseguir a sua jornada.

Subitamente, estampidos vindos da estação silenciaram o cantador e petrificaram o inquieto vigilante como um perdigueiro tomado por um pressentimento de perigo eminente. Do comboio desceram hordas de irmãos em armas, sinal de um poder que todos desejavam ver pelas costas. Afinal, o homem da estrela ao peito ia ficar de pedra e cal e aquela balada fanhosa continuaria a ouvir-se anos a fio.

Uma terceira vez, o comboio voltaria a apitar... não para uma chegada mas para uma partida. Não para uma recepção calorosa mas para uma despedida que é quase sempre triste e inesperada. O silvo que, não obstante, ecoou festivo, largou uma fumaça que envolveu o passageiro apressado e a mulher ao seu lado como uma longa cauda de noiva. Poucas semelhanças teria com o jovem solitário que ali chegara quarenta anos antes, a não ser pelas coronhas de madre pérola que brilhavam, ao sol do meio dia, como se fossem novas a estrear.

Já de pé no estribo agitou o chapéu com a única mão livre mas tinha os olhos tão nublados do fumo que mal se apercebeu do dignitário local que apressadamente corria pela plataforma carregando a pomposa almofada de cetim azul na vã tentativa de recolher o símbolo do poder máximo que inadvertidamente lhe continuava ao peito. Um pouco tarde demais, arrancou-a do seu fato de cerimónia, atirando-a pela janela do comboio que soou aos ouvidos do velho cantador como uma moeda rolando pela plataforma. Até ali desconsolado com aquela partida, abriu-se-lhe a boca mostrando os poucos dentes que lhe restavam num imenso sorriso de gratidão e logo pegando na viola entoou no seu tom cada vez mais nasalado a balada que vezes sem conta cantara:

Não me abandones meu amor

Não me partas o coração

Espera por mim ao meio-dia

Quando o comboio apitar

Vai ter comigo à estação

Vou preferir uma aliança

A uma estrela de latão

Oh não me deixes por favor

Não me esqueças meu amor

Mais vale ter-te na mão

Do que ao peito feito às balas

Uma estrela de latão...

Oh não me esqueças por favor....

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