O SEU A SEU DONO
- Onofre Santos
- 11 de set. de 2017
- 2 min de leitura

Nunca perco, quando estou em Luanda, a pequena feira do artesanato da Ilha de Luanda, sempre nos primeiros sábados de cada mês. Não vou até lá para comprar mas para ver, apreciar, contemplar ou, dizendo melhor, empreender uma busca da beleza inesgotável concentrada naquele espaço tão pequeno, tão perto das ondas que deslizam pela praia da contra costa. Não é o caso deste primeiro Sábado de Setembro em que estou longe, não podendo fazer mais do que recordar e imaginar o seu bulício colorido.
Procurei no meu telefone, atropelando centenas de instantâneos acumulados, algumas imagens da minha última passagem por lá. Depara-se-me a foto de uma visitante junto de uma tenda de vestidos e acessórios de moda em padrões afro, cuja atitude de avaliação, curiosidade ou hesitação na escolha, me saltara à vista, não me deixando resistir à tentação de a captar digitalmente no meu álbum informático de lembranças fugidias. Voltei no tempo àquele segundo de emoção em que traduzi o seu jeito de apreciação, a mão meia fechada poisada desafiadoramente sobre a anca, o polegar revelando uma personalidade bem vincada e os outros dedos um desprendimento de carácter. Mantinha o dorso elástico, pronto para o próximo movimento, e tentei decifrar a leve impaciência que dimanava daquela posição, sem deixar de admirar a cachoeira dos seus cabelos escorrendo em torvelinho cobrindo a parte nua das suas costas que o vestido cor de púrpura não pretendia ocultar. Ao lado dela, a mãe, provavelmente, olha com desaprovação os meus disparos fotográficos. Disse qualquer coisa que a minha objectiva não poderia captar mas a jovem permaneceu imóvel, apenas a cachoeira dourada pareceu mudar de curso maravilhando-me a sua magnífica indiferença em flagrante contraste com a súbita investida da senhora mais velha que, num repelão inesperado, me arranca o telefone das mãos. Fiquei plantado, exactamente onde estava, sem esboçar um gesto de reacção como se estivesse conformado, antecipando o que iria acontecer de seguida. Sem se dignar voltar, a jovem segurou o telefone de visor iluminado descobrindo certamente as minhas últimas imagens. A mais velha, ao lado, insistia com azedume que a jovem tomasse uma qualquer atitude severa, como chamar a polícia ou exigir-me responsabilidades, eu sei lá! Com uma simplicidade surpreendente, porém, como um sol saindo de entre as nuvens, revelou para mim o rosto juvenil e de forma decidida estendeu-me o telefone. Tudo ficaria por aí, como um episódio insólito se ela, sem o mínimo sorriso, não tivesse acrescentado: “Não quero nada que não seja meu”. Balbuciei então a primeira desculpa que me veio à cabeça...”Mas as fotos são suas...“. Sorriu, então, levemente, replicando como se fosse ela que tivesse cometido alguma falta... “e suas também!!”.
Estendi a mão pela primeira vez e por um segundo o pequeno objecto de discórdia foi o ponto de união entre dois desconhecidos. Demorei o tempo que pude ao reapossar-me do telefone para a olhar nos olhos mas ela furtou-se à minha tentativa e nada pôde impedir a sua desaparição, a cor púrpura do seu vestido diluindo-se rapidamente entre os panos coloridos pendurados na tenda como se fosse apenas um pequeno rubi de vidro, num caleidoscópio de criança.

PUBLICADO na revista AUSTRAL de Setembro-Outubro... para ler com a cabeça nas nuvens voando na TAAG
Comments