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Oração

  • Onofre Santos
  • 6 de out. de 2017
  • 4 min de leitura

Num sonho, o profeta Zacarias viu um homem que tinha na mão um cordel para medir o comprimento e a largura de Jerusalém. Pergunto-me o que ando eu a medir na minha vida porque, não sendo diferente, também ando com uma fita métrica no bolso para medir e avaliar as dimensões palpáveis da nossa realidade, das outras pessoas, das instituições, do país em si mesmo e no contexto das outras nações. Também preciso de um anjo que me diga, como aquele que falava com Zacarias: ”Corre, e vai dizer a esse jovem que tem a corda na mão, diz-lhe que Jerusalém deverá ficar sem muros, por causa da multidão de homens que haverá nela...” (Livro de Zacarias 2,5-9.14-15a.).

Medito então como a realidade que procuro medir está sempre limitada ao meu campo de visão, que estou fatalmente um passo atrás, e como tenho de ser prudente nos meus juízos e na compreensão dos juízos dos outros a respeito dos mesmos objectos de contemplação.

Ouvi, por isso, com muita atenção, o discurso inaugural do terceiro Presidente de Angola, contendo as suas linhas de acção programática para os próximos cinco anos, mesmo num contexto de crise financeira global, e senti-me esmagado pelo peso das responsabilidades que pairam sobre os seus ombros. Fui mentalmente registando algumas das fitas métricas referidas no discurso, como o são os indicadores do desenvolvimento humano e do desenvolvimento económico, as taxas da mortalidade infantil e do analfabetismo, sujeitos a padrões internacionais de avaliação que são inexoráveis na sua expressão numérica.

Senti, por isso, como muito natural, o apelo às forças sociais, aos sindicatos, às ordens profissionais, às organizações não governamentais e até a alguns grupos de pressão, de quem o Presidente espera contribuição para a concepção e execução das políticas públicas a aprovar durante este período de cinco anos.

Não pude eximir-me ao sentimento de que todo o discurso é um autêntico acto de fé do Presidente, para cuja realização precisará não apenas de todas as forças vivas de Angola mas também da ajuda transcendental em que eu pessoalmente acredito. Não bastaria, a meu ver, a saudação às autoridades eclesiásticas a quem foi reconhecido o seu papel no árduo processo de harmonização e moralização e de inclusão da maioria dos angolanos mas, também, a exortação à igrejas para que incessantemente rezem para que o programa presidencial dê certo e se concretize na prática a sua mais importante promessa de melhoria das condições de vida de todos os angolanos. O Mahatma Gandhi que sonhou a libertação da sua Índia e com férrea determinação enfrentou desafios imensos ao longo de todos os dias da sua vida, afirmava que “a oração é a chave para a manhã e o fecho para a noite”. O Mahatma, embora hindu, tinha a mesma crença que um católico, um judeu ou um muçulmano, num poder que, apesar de inapreensível, se apodera da realidade e a julga. O Altíssimo, o Clemente e Brama são o mesmo Deus que há séculos invocamos implorando a sua empatia para com os nossos problemas. Não se diga, porém, que eu ache que só um milagre pode permitir a alcançar em cinco anos as metas delineadas no horizonte político do nosso Presidente. Não se trata de pretender colocar Deus ao serviço do seu programa de governo, o que seria uma privatização inimaginável, mas sim, nesta época secular em que se adoram deuses sucedâneos – o Dinheiro, o Sexo, o Poder, a Ciência, a Nação ou o Futebol – abrir o coração para o Alto, reconhecendo a nossa falibilidade, fragilidade e incerteza, pondo a nossa esperança naquele que mesmo antes de Lhe pedirmos alguma coisa em oração, antecipadamente sabe do que necessitamos (Mateus 6,7-9).

O Presidente não o pediu, mas as Igrejas de Angola bem poderão sentir-se interpeladas pelo seu apelo ao “apoio de todos na difícil caminhada”, para se concertarem na realização de uma ecuménica celebração encomendando a Deus os objectivos da governação e, principalmente, e muito mais importante, promovendo entre os seus fiéis, a oração cada manhã e cada noite pedindo que todos os chamados a trabalhar no governo o façam com a humildade e desprendimento de Gandhi e Mandela, dois santos no céu da política que deveriam suscitar a devoção de todo o governante. É um facto que, neste mundo aparentemente ateu, já não se jura por Deus mas, em vez da fotografia do Presidente em cada Gabinete – um substituto icónico e pseudo-religioso do divino – melhor ficaria emoldurado o juramento pronunciado na cerimónia de nomeação. Na verdade, esse juramento, sobretudo se for repetido cada dia, pode ser entendido como uma oração. Não será uma repetição vã, porque cada Ministro quando o pronuncie, como quem recita um mantra, só poderá sentir-se mais tranquilo, mais confiante e mais motivado, mesmo que a fórmula não termine, como em tantos juramentos por esse mundo fora, pelo tradicional “assim Deus me ajude”. Imagino que essa oração terá um sentido diferente quando forem passando os meses e anos em que os juramentados se mantiverem nos respectivos gabinetes. Isto porque o juramento está na origem do exercício do cargo mas é também uma meta... logo, a sua recitação, ao longo de cinco anos, implicará uma avaliação pessoal, íntima, como um exame de consciência, sobre o cumprimento da missão de que foram incumbidos. Aliás, é nisso que consiste a “Honra” pela qual os governantes juram, porque esta deve habitar no mais íntimo de cada um deles, tão próximo do seu coração lá onde Deus também pode ser encontrado e não só “nas alturas”. Acreditar que Deus nos pode e vai ajudar também é patriotismo, na medida em que é uma manifestação do amor pelo país pelo qual o nosso coração bate. Ámen!

Publicado na edição do VANGUARDA deste fim de semana, 6 de Outubro de 2017

 
 
 

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