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A Casa das Promessas


Há anos que, dia a dia, contemplei da minha janela no sétimo andar do Palácio da Justiça, o nosso Parlamento a erguer-se do solo, naquela vasto declive que vai do velho Hospital Maria Pia até ao mar, tendo seguido com prazer crescente o fecho da sua abóbada, a imponente cúpula que coroa a Casa das Leis. Ao longo de meses vi assentar os vários gomos rosados que compõem aquela peça final até que o último encerrou a construção. Senti que a partir daquele momento deixava de estar a céu aberto para ficar selado como um enorme tesouro. Desde esse dia habituei-me a mirar do alto da minha janela a sua silhueta tributaria do Templo de Júpiter Capitolino da antiguidade que por sua vez inspirou outros templos religiosos ou políticos como a Catedral de São Paulo em Londres, a Basílica de São Pedro em Roma, o Panteão de Paris, o Capitólio de Washington e o Capitólio de Havana, para citar apenas alguns com os domos mais célebres. Embora em plena modernidade os edifícios capitolinos alberguem apenas os representantes do povo, o seu perfil arquitectónico ainda evoca a memória das antigas moradas dos deuses. Não é por acaso que a cúpula do Capitólio em Washington não dispensou a colocação de uma imagem no seu topo, a estátua da liberdade, uma deusa dos nossos tempos que atraiu por mais de um século milhões de fiéis de todas as partes do mundo.

Tudo isto fez crescer em mim a religiosa curiosidade de transpor o seu majestoso limiar, passar a minha pequenez pelas gigantescas colunas, antes de penetrar no seu interior grandioso, percorrer depois as suas alas e corredores até desaguar na amplitude celestial do seu salão do plenário onde têm assento os 220 Deputados, dispondo ainda de capacidade para mais umas centenas de visitantes ou convidados. Hoje, finalmente, fui um dos ocupantes desse salão magnífico, para presenciar uma das cerimónias rituais da vida parlamentar, a sessão de abertura da 1.ª Sessão Legislativa da IV Legislatura da Assembleia Nacional, e a muito esperada primeira intervenção do novo Presidente da República sobre o estado da Nação. O discurso não desiludiu, foi directo ao ponto de cada uma das questões sobre as quais a Nação vai ter de arregaçar as mangas e transpirar nos próximos cinco anos parlamentares, embora o Presidente queira ver já alguns resultados já nos próximos meses. Pareceu querer dizer o mais claramente possível, que espera actos e não palavras. Falava, porém, numa casa que é, por excelência, o reino da palavra. Para os deputados que se veem a si mesmos como autênticos espadachins da palavra, prontos a esgrimir contra ventos e marés, o Presidente garantiu que não lhes faltarão oportunidades de duelo. Revelando os seus propósitos de imprimir mais eficiência operacional e eficácia governativa, comprometeu-se a instruir os senhores Ministros a prestarem contas da sua actividade, regular e periodicamente, aos destinatários da sua acção, os cidadãos angolanos. Não o disse especificadamente, o senhor Presidente, se seria nesta Casa dos Eleitos do Povo que os seus mais directos auxiliares viriam dar conta das distâncias percorridas em direcção às muitas metas por ele traçadas ao longo do seu discurso. Não haverá, local mais adequado para prestar contas aos cidadãos do que a Assembleia Nacional, sobretudo se essas prestações forem transmitidas em directo para toda a gente veja como trabalham o governo e o parlamento. É possível que os senhores Deputados, que desde há algum tempo a esta parte se sentem constitucionalmente despojados da prerrogativa de chamar a capítulo os senhores ministros para algum puxão de orelha, tenham ficado surpreendidos por este brilhante lance de adiantamento que coloca a bola justamente na grande área dos parlamentares. Como quer que seja, o tiro de partida está dado, e é tempo de os cidadãos angolanos começarem a habituar-se a “torcer” ao vivo e a cores, não apenas diante de partidas de futebol, mas também presenciando a evolução dos desafios do nosso capitólio, transmitidos em directo. Desafios que, a avaliar por alguns dos objectivos apresentados no discurso do “estádio” da Nação, prometem vir a dar um grande campeonato. Como o Presidente prometeu que daria o exemplo e já começou, será bom que os Presidentes dos Grupos Parlamentares o sigam e prestem também eles, pela Rádio, Televisão e Internet, regular e periodicamente, contas da sua actividade, nomeadamente os projectos de lei a apresentar ao hemiciclo para a melhor resolução dos problemas dos seus eleitores, a promoção do seu bem-estar, principalmente da sua educação e saúde.

Ficou claro que os dois poderes competem lealmente, cada um à sua medida, na execução de ingentes tarefas legislativas. O Presidente sublinhou o que de mais importante espera da Assembleia Nacional e não necessariamente pela sua ordem de urgência: a aprovação do novo Código Penal e o novo Código de Processo Penal, a Reforma da Justiça e o pacote das Autarquias. Seria bom saber, com uma periodicidade razoável onde estamos no escorregadio caminho legislativo da feitura e aprovação de leis com esta dimensão. Mas esta é mais uma razão para sermos informados, sem necessidade de muitos detalhes, mas com a suficiente clareza, para termos a percepção de onde estamos ao certo. Assim poderemos almejar uma democracia aberta e não encerrada entre as paredes desse templo colossal, erguido na esplanada onde São João Paulo II celebrou a sua missa campal às vésperas das primeiras eleições multipartidárias. Pode dizer-se que o nosso Parlamento foi edificado em terreno santificado, o que não faz dele um templo religioso, bem pelo contrário, lembrando, no entanto que ele deve ser uma casa de devoção. Há muito que compreendi o lema de um amigo com quem trabalhei algum tempo... por uma grande causa não basta a dedicação. Com dedicação pode até conseguir-se um bom desempenho ou uma promoção pessoal. Mas, quando se é eleito Presidente da República ou Deputado, quando se é ungido pelo voto de milhões, cuja principal necessidade é de ordem social, como o diagnóstico do estado da Nação hoje o proclamou, será necessária muita devoção para se merecerem os cargos em que um e outros foram investidos.

Creio que isto só será realidade se todos os dias no nosso Parlamento forem escutadas, ecoando das suas entranhas, as palavras de exortação do Papa que naquele terreno rezou a sua missa, vai para um quarto de século, pedindo paz e reconciliação. Infelizmente, não foi ouvido e era santo. O novo Parlamento pode ter apagado da memória a antiga barroca de terra vermelha em que foi edificado, mas não fez esquecer que o mais importante da sua mensagem só tem vindo a ser cumprido depois de muito sofrimento do povo angolano que agora ganhou o direito de esperar o cumprimento de todas as promessas.

Publicado no VANGUARDA de 19 de Outubro de 2017

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