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Ver com os próprios olhos...

  • Onofre Santos
  • 4 de nov. de 2017
  • 4 min de leitura

Juro! Disseram os Deputados, por três vezes, acompanhando o pronunciamento da fórmula sagrada do seu empossamento. O seu juramento, ao contrário do juramento do Presidente da República, não consta da Constituição, mas sim do Regimento da Assembleia Nacional. É um juramento que tem, no entanto, o mesmo valor ético e, não é por acaso que, tanto o Presidente como os Deputados, para além de cumprir e fazer cumprir a Constituição, defender a independência, a soberania, a unidade e a integridade territorial do País, juram “promover o bem-estar e o progresso social de todos os angolanos”. O “todos” apenas sublinha o cumprimento dos princípio da universalidade e da igualdade que encimam o Título da Constituição dedicado aos Direitos Fundamentais. Sabemos, porém, que os princípios podem realizar-se em maior ou menor medida, dependendo da capacidade de concretização dos princípios e que para se concretizarem os princípios tem de se ter presente o entendimento dinâmico e contextual da Constituição. Cabe ao legislador político a primeira palavra como intérprete da Constituição de forma dinâmica e contextual, legislando democraticamente.

Depois de decorridos quinze anos sobre o advento da paz, nunca, como neste mandato as obrigações sociais que recaem sobre os três Poderes, o Executivo, o Legislativo e o Judicial, vão estar sob o exame atento dos governados. Os tão esperados dividendos da paz, assegurados e garantidos por uma Constituição renovada em 2010, têm visto o seu cumprimento retardado e parcialmente comprometido pelos efeitos de uma crise financeira de que ainda se não vê o fim. Com meios e recursos limitados para cobrir todo o leque ambicioso de realizações que o Executivo se propõe, a noção de prioridade tem de ser visto e revisto à lupa, linha a linha, na primeira grande oportunidade para os Deputados da Nação exercerem o seu sagrado poder de controlo e fiscalização. É fundamental, no quadro da aprovação do Orçamento Geral do Estado, saber distinguir o que é mais importante do que é mais urgente e com base nesta distinção determinar a prioridade da despesa social do Estado, especialmente no que diz respeito à diminuição do défice educativo dos angolanos. A este respeito, os deputados deverão pensar muito particularmente nos que mais precisam, as crianças carecidas de ensino.

A Constituição de 2010 descreve num exuberante capítulo os direitos e deveres económicos, sociais e culturais, os quais, sendo, fundamentais, como os demais direitos e deveres consagrados na Constituição, não gozam, contudo, das mesmas características de efectividade. São direitos e deveres de realização gradual e progressiva, ou seja, direitos cuja efectividade depende da criação das condições necessárias para que eles se tornem actuais, reais ou efectivos. Dito por outras palavras, a realização destes direitos depende das políticas e da vontade política de as levar por diante e realizar. Em três das suas disposições a Constituição manifesta a sua preocupação com as crianças e com o seu ensino. Desde logo o artigo 79.º nos termos do qual “O Estado promove o acesso de todos à alfabetização, ao ensino, à cultura e ao desporto, estimulando a participação dos diversos agentes particulares na sua efectivação, nos termos da lei”. Depois, o artigo 80.º recorda que “A criança tem direito à atenção especial da família, da sociedade e do Estado, os quais, em estreita colaboração, devem assegurar a sua ampla protecção contra todas as formas de abandono, discriminação, opressão, exploração e exercício abusivo de autoridade, na família e nas demais instituições”. Este mesmo artigo estabelece que “As políticas públicas no domínio da família, da educação e da saúde devem salvaguardar o princípio do superior interesse da criança, como forma de garantir o seu pleno desenvolvimento físico, psíquico e cultural”. Por sua vez, o artigo 21.º refere entre as tarefas fundamentais do Estado, a de “promover políticas que assegurem o acesso universal ao ensino obrigatório”. A pergunta de diligência constitucional que se impõe é esta: qual o estado do cumprimento desta obrigação fundamental?

Bastará consultar o portal do Ministério da Educação, para constatar que esta obrigação se encontra em mora desde 2015, o ano em que se venceria o objectivo de alcance gradual destinado a cobrir todas as crianças do nosso País com o ensino básico primário. Os nossos Deputados não o podem ignorar e, consequentemente, terão de reconhecer duas coisas: que a discriminação a que ainda são votadas tantas crianças é inaceitável; e que, neste momento em que se inicia a IV Legislatura em quarenta anos de independência e em quinze anos de paz, muito depende deles para que seja mudado este estado de coisas. Em primeiro lugar porque, ao aprovarem o Orçamento Geral do Estado, os Deputados irão avalizar uma política de educação visando o acesso universal e gratuito ao ensino básico que será tão mais gradual quanto o grau de prioridade que lhe for atribuída em comparação com outras políticas. Em segundo lugar porque ao aprovarem as verbas destinadas ao ensino básico terão feito a demonstração do que conhecem quanto às necessidades deste sector vital para o desenvolvimento do País. De acordo com o nosso sistema eleitoral, 90 Deputados são eleitos por círculos provinciais e, ainda que todos eles sejam representantes de todo o povo e não apenas dos círculos eleitorais por que foram eleitos, salta aos olhos que a sua primeira linha de observação são as províncias pelas quais foram eleitos. Por isso, cada Deputado por uma província deve saber quantas crianças em idade escolar nela vivem, quantas escolas nela existem e quantos professores nela ensinam. Grande ou pequena, mais ou menos populosa, cada província deve ser percorrida em todas as direcções, cada aldeia ou comunidade visitada, sendo de privilegiar nesse afã de conhecimento o contacto com as autoridades tradicionais e religiosas. Mais do que o Censo, a sensibilidade de quem está mais próximo é indispensável. Foram os votos desses eleitores provinciais que os trouxeram até ao nosso Capitólio. É preciso voltar, ser reconhecido e sobretudo solidário. Como será extraordinário vir a escutar da boca de um Deputado o seu relato de viagem, descrevendo a noite em que dormiu numa aldeia, beneficiando da sua hospitalidade generosa, recolhido em silêncio ouvindo a chuva caindo num tecto de zinco ou sentado à volta de uma fogueira apreciando as histórias que não faltarão para lhe contarem. Depois, no salão dourado do Parlamento, poderá fazer as perguntas que entender mais adequadas ao Ministro competente quando este, por determinação superior, vier dar conta do andamento dos trabalhos do seu Ministério. E sempre o poderá confrontar com as suas próprias contribuições e dizer-lhe o que ele talvez não possa dizer: “Eu vi com os meus próprios olhos!”

Publicado no VANGUARDA de 3 de Novembro 2017

 
 
 

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