Branca de Neve
- Onofre Santos
- 10 de nov. de 2017
- 5 min de leitura

Era uma vez uma princesa... invejada pela sua beleza e riqueza que se tornou dona de casa de sete anões na floresta. É uma história que todos conhecemos, importada do norte da Europa onde cai a neve e conta a lenda havia espelhos que diziam a verdade. Se a quiséssemos retocar para a contar às nossas crianças em África, com algum esforço de adaptação, a bela princesa em vez de Snow White chamar-se-ia, por exemplo, Black Night, trocando a alvura da neve pela escuridão da noite e, porque não, o espelho mágico pela lua, também ela capaz de revelar a verdade na noite mais escura. Diz, com efeito, um ditado, que à noite todos os gatos são pardos... e é bem verdade que à noite, todas as nossas diferenças de cor se diluem. A princesa da história original também não ligou às diferenças... os anões, à primeira vista, eram pessoas que pela sua pequeníssima estatura poderiam ter sido considerados normais na sua infância, mas não como velhos carecas e de barbas brancas. Por isso eles viviam meio escondidos, no seu refúgio da floresta. Foram eles, no entanto, que salvaram a princesa. A princesa teve o mérito de não ser preconceituosa e de saber revelar-se uma boa dona de casa. A história, ou não fosse um conto de fadas, teria, igualmente de a fazer passar por algumas aflições antes se chegar a um fim feliz... seja na forma de um príncipe encantado, seja pelo reconhecimento dos seus méritos e não pela sua beleza ou pela sua real ascendência. Na história dos irmãos Grimm que, de aldeia em aldeia e de caderno na mão, recolhiam os relatos das histórias de encantar que escutavam dos mais velhos, Branca de Neve sofreu ataques sucessivos e sistemáticos da sua madrasta. Disfarçada de quitandeira vendeu-lhe um laço para colocar à volta da cintura para a tornar mais esbelta mas que maldosamente apertado a teria asfixiado caso não tivessem os anões chegado a tempo. Doutra vez quis vender-lhe um pente dourado para deixar liso e brilhante o seu cabelo mas de facto tinha um feitiço que a deixaria inanimada. Mais uma vez os anões apareceram a tempo de a reanimar. Por fim voltou para a tentar com uma bela maçã importada que ela própria provou para afastar qualquer réstia de desconfiança... logo que a princesa lhe deu uma mordida engasgou-se sufocando logo em seguida. Desta feita os anões chegaram aparentemente tarde e julgando-a morta a colocaram numa urna de vidro para poderem continuar, pelo menos, a contemplar a sua beleza. De facto não parecia morta mas apenas dormindo.
Também a nossa princesa seria tentada e posta à prova, primeiramente acusada de nepotismo por ser filha de quem era e depois por se ter rodeado de pessoas que não devia. Havia um tribunal no reino, não podemos esquecer, de juízes devotos, confiando mais no seu bom senso, no seu conhecimento da natureza humana e na sua perspicácia intuitiva. Não tinham um espelho mágico para confirmarem a verdade dos seus veredictos, mas confiavam que a lua providenciasse luz bastante para não cometerem o erro solar de fazer distinções indevidas. Usado uma vez sem sucesso o recurso ao tribunal, eis que uma onda humana convocada por via electrónica se ergueu ameaçadora para afogar a princesa e os seus anões. No meio desta história dedicada principalmente a adultos, uma criança, na sua inocência perguntará: “o que é que a princesa fez de mal para a quererem afogar?” O pai da criança coçará a cabeça e perguntará ao vizinho... “ouve lá, porque é que querem afogar a princesa, o que é que ela está a fazer de mal?”...e a pergunta irá sendo repetida como um eco que ficará sempre sem resposta, porque ninguém quer falar de contas e de arrumo da casa... mas dos anões que estão a mais nesta história.
Quem poderá salvar a princesa? À sua volta apenas os anões de cabeça baixa, as lágrimas rolando-lhes pela face... a multidão exasperada passará como uma enxurrada das primeiras chuvas, deixando no ar um cheiro a terra e um gosto amargo na boca. Quando finalmente a noite cair e a lua emergir redonda e luminosa as pessoas no sossego das suas casas virão à janela e, como se ela fosse um espelho mágico, repetirão a pergunta que até aí ficara sem resposta. A lua responderá, então, no coração de cada um que, o que importa, não é quem faz ou quem trabalha, mas que o trabalho tenha resultados.
Infelizmente nem tudo é, ou pode ser reduzido a uma parábola. A manifestação contra a princesa marca a primeira grande controvérsia da tão anunciada nova era, cujo paradigma se deve basear no princípio da responsabilidade de quem tem uma função, no seu corolário de prestação periódica de contas e a adequada consequência da avaliação, tendo aqui particularmente em conta o ganho para o Estado. Estamos a testemunhar a rendição de uma geração por outra e esta mudança caracteriza-se pelo surgimento de novos grupos e novas classes que querem ver realizadas as suas aspirações sem demora. Por contraposição aos mais velhos, a caminho da reforma, os mais novos aprestam-se a apanhar o elevador social que depois de alguns solavancos e falsas partidas inicia agora a sua lenta ascensão. Nova gente deve obrigar, também, a novas regras e a principal é a de um compromisso dos nomeados para qualquer cargo ou função com o cumprimento de objectivos ligados ao aumento de bem estar para todos os governados e a aceitação da sua avaliação de acordo com a sua taxa de sucesso no seu cumprimento. Por isso mesmo, a popularidade confere um selo de autenticidade aos poderes seja ele o Executivo, o Legislativo ou o Judicial. Os destinatários da actividade pública de cada um deles será medida pelo grau de satisfação alcançado em cada um dos sectores da vida social. Nesta nova era marcada pela competitividade os resultados obtidos deverão ser o teste da verdade. Nada disto, é claro como a neve, seria necessário se existissem espelhos mágicos para sempre se escolherem as pessoas certas. Na falta destes fabulosos instrumentos, só a avaliação de cada um em função dos objectivos nos pode dar alguma garantia de que se está no rumo certo. Garantia mínima essa, porque os resultados a obter também dependerão de objectivos correctamente definidos, com expressão temporal e periódica da sua prevista realização. Também neste caso seria necessário um espelho mágico para nos dizer o que é mais importante alcançar neste momento e em quanto tempo... E não nos refugiemos nos objectivos do milénio ou de uma década que não passam de uma fábula para quem acredita em príncipes encantados. Os objectivos têm de ser transpostos para o nosso quotidiano e com sentido de urgência. Devemos apressar-nos, todos os dias, como os pequenos sete anões correndo alvoroçados para salvar a princesa...

Publicado no VANGUARDA de 10 de Novembro 2017
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