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Um novo direito nasceu!


Decorreu esta semana em Luanda a II Bienal do Direito Constitucional, reflectindo sobre os nove anos do Tribunal Constitucional de Angola... quase uma década vivida sob a abóbada de um regime em que aquele Tribunal assentou como pedra angular. A alusão à pedra angular li-a, dez anos atrás, antes da instalação do Tribunal Constitucional, numa entrevista do Dr. Rui Ferreira, o reputado jurista que coordenara os trabalhos da comissão constitucional de 2004 e que viria a ser o primeiro Juiz Presidente daquele Tribunal. Recordei há dias, numa reunião entre Juízes Conselheiros do Tribunal Supremo e do Tribunal Constitucional que aquela comparação tinha uma ressonância religiosa, a alusão à cúpula que coroa tantos templos desde a antiguidade até à modernidade. E não é por acaso que na silhueta capitolina do parlamento angolano se destaque a sua cúpula, a coroar a casa da Constituição, tendo apenas o céu como limite. A ilusão tem alguma coisa a ver com a laicidade do Estado, uma conquista de que tanto se orgulha o mundo ocidental que não se apercebe, no entanto, que deitou a religião pela janela e abriu as suas palacianas portas a uma nova religião com outro nome. Pois o que é a Constituição dos direitos fundamentais senão a consagração dos mandamentos divinos em termos de magna carta? Em resumo, a aplicação prática da regra de ouro de fazer aos outros o que queremos que nos façam a nós, está na base de todos os direitos, liberdades e garantias. Os direitos fundamentais, a começar pelo mais importante, desde Caim, – o direito à vida – integram um catálogo que não está muito longe do decálogo de Moisés ou, muitos séculos depois, do códice islâmico de Maomé, sendo certo que, incluindo os princípios e valores do hinduísmo e do confucionismo, esses direitos constituem a base ética comum a toda a humanidade. Como o exemplo de Caim o demonstra é, porém, a transgressão que obriga a toda uma criação jurisprudencial que procura nem sempre de forma linear confrontar a prática jurídica real com a Constituição. Se é verdade que a nossa Constituição diz expressamente que as leis, os tratados e demais actos do Estado, dos órgãos do poder local e dos entes públicos em geral só são válidos se forem conformes à Constituição, compete ao Tribunal Constitucional apreciar o eventual desvio de quaisquer normas e demais actos do Estado da sua conformidade à lei fundamental. A inconstitucionalidade que fulmina o acto político, administrativo ou judicial desconforme é um pronunciamento de heresia, uma violação da ortodoxia, embora uma decisão que separa o acto, mas não o seu autor, da vida jurídica. O aniquilamento não é pessoal, mas reduzido às proporções do acto produzido em violação da Constituição, o livro sagrado da democracia e do Estado de direito. Ainda assim, a divergência de entendimento entre quem pratica o acto desconforme e quem pronuncia o anátema suscita uma questão de poder: a falta de consenso sobre a constitucionalidade de uma decisão do Estado sempre conduz à questão de saber quem tem a maior capacidade para a impor. Por isso, os actos políticos são, pela generalidade dos autores, subtraídos à fiscalização da constitucionalidade. São como que uma reserva do poder executivo na qual o poder judicial não se deve intrometer. Claramente, a letra da Constituição não permite essa conclusão, mas é apenas a letra... Na prática, será sempre conveniente e necessário perscrutar o espírito da norma, tal como no âmbito religioso cabia aos sumo-sacerdotes ou aos sábios teólogos darem o seu parecer e veredicto sobre as questões mais difíceis em que a política e a religião estavam interligadas. Porém, mesmo quando essa interpenetração se impunha (e ainda se impõe hoje nos estados islâmicos) também os soberanos tinham de manter-se fieis ao direito sagrado, sob pena de incorrerem no desagrado do povo que tem olhos para ver e sempre se arroga o direito de exigir que ninguém esteja acima da lei.

O mesmo se deve dizer do modo como se exerce hoje em dia a actividade política e da sua conformidade com a Constituição, nomeadamente no que toca ao cumprimento dos seus princípios operatórios como o da igualdade, da solidariedade, da protecção da confiança e o da proporcionalidade. Com efeito, nos dias de hoje, tal como no firmamento em ocasiões raras se assiste ao nascimento de uma estrela, uma “nova” com a sua explosão de luz e o seu rasto luminoso, também no nosso horizonte constitucional vai emergindo espantosamente um novo direito que se ergue aos nossos olhos como analogicamente fundamental: o direito à não frustração das expectativas criadas pelo discurso presidencial que pela terceira vez ecoou no País. Expectativas de que não apenas serão apresentadas e realizadas novas soluções como também soluções de revisão de soluções anteriormente adoptadas. São mutações em que os angolanos depositam toda a sua esperança e confiança na medida em que elas se apresentam como a melhor forma de salvaguarda do interesse público. Para que essas expectativas não sejam frustradas e o seu direito a um dia a dia melhor não seja violado é necessário que os princípios de igualdade de tratamento e o de solidariedade com os mais necessitados prevaleçam sobre os demais clamores dirigidos ao Estado, por muito justos que sejam. A igualdade não garante por si só a justiça, embora seja uma sua componente essencial. Por isso, o sentido da proporcionalidade vai ser fundamental para discernir entre o que é mais importante do que é mais urgente, entre o que é razoável cortar para se poder aplicar onde é mais necessário gastar. A própria Constituição dá um sinal do que é prioritário a começar pela dignidade da pessoa humana referida logo no artigo 1.º da Constituição e à cabeça do elenco dos limites materiais à revisão constitucional. Para quem ouve o Presidente as expectativas nunca foram tão altas. Tão altas que que parecem ter criado um direito à sua não frustração. Os seus discursos tocam a alma do povo mas o Presidente não tem o toque de Midas para transformar em ouro tudo aquilo que toca. Pelo contrário, ele precisa de ouro para fazer o milagre de enriquecer o país. Que ouro é esse? Ele próprio o disse, por outras palavras: os melhores quadros, pessoas competentes e honestas “movidas apenas pelo seu desejo de bem servir o país”.

O futuro próximo dirá se este direito que desponta dispersando nuvens de pessimismo é a revelação de um verdadeiro direito fundamental ou apenas a camuflagem de uma expectativa resgatada depois de demasiado tempo sonhada. A Constituição pode não ter tomado o lugar da nova religião do Estado, mas continua a não dispensar a devoção, a paixão e a crença na humanidade!


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