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Uma questão de talentos

  • Onofre Santos
  • 24 de nov. de 2017
  • 5 min de leitura

O pároco da Igreja do Carmo explicava no último domingo, na missa das crianças, a parábola dos talentos... O senhor dos talentos confiou a cada um dos seus administradores determinado número de talentos conforme a sua capacidade: cinco, dois, ou um apenas. A primeira observação é que todos devem ser dotados de algum talento mas este valor depende da habilidade e do carácter de cada um. Primeira regra: saber avaliar e não exceder essa avaliação.

Quando chegou a altura de prestar contas o que recebera cinco talentos disse: Senhor confiaste-me cinco talentos, aqui estão outros cinco que eu ganhei”. Respondeu-lhe o senhor: Muito bem ministro bom e fiel; porque foste fiel em coisas pequenas, confiar-te-ei as grandes!” Aproximou-se também o que recebera dois talentos e repetiu-se a prestação de contas e a mesma resposta apreciativa. Chegou também o que recebera um só talento que referiu: “Senhor eu sabia que és um homem severo, que colhes onde não semeaste e recolhes onde nada lançaste... por isso tive medo e escondi o teu talento na terra. Aqui tens o que te pertence”. O bom do pároco voltou-se para as crianças que enchiam a igreja e perguntou: “O que é que acham? Este ministro foi bom ou foi mau?” “Mau” responderam em uníssono... “Mesmo assim...” volveu o sacerdote, “ele devolveu o talento... será que ele foi tão mau assim?” “Foi mau e preguiçoso!” retorquiram as crianças entusiasmadas na censura ao ministro que, ao contrário do que devia, não pôs a render o seu talento! Segunda observação, o talento é para usar e pôr à prova... não é para ser enterrado. Como ninguém põe a luz onde ela não se veja. De que adianta na noite escura ter uma lamparina se não a acendemos ou se a acendemos e colocamos debaixo da cama?

Entretanto as crianças lá continuaram a responder aos desafios que lhe eram lançados, concluindo que o dinheiro – os talentos eram uma moeda – é bom quando é bem aplicado e pode ser muito mau se mal aplicado, seja porque é desviado dos fins a que se devia destinar, seja porque foi escondido ou enterrado. Terceira observação: o talento deve ser reconhecido. Os bons administradores devem ser premiados e punidos os maus. Aos que apresentam resultados devem ser confiadas mais altas tarefas. Os que, pelo contrário se revelem improdutivos deverão ser sancionados, despromovidos, ou até castigados mais severamente, conforme os casos e as suas circunstâncias.

Não pude deixar de ligar esta parábola ao recente discurso de empossamento dos novos zeladores da nossa “galinha dos ovos de ouro”. O Presidente conferiu posse a um grupo de administradores que, precisamente, qualificou como “talentosos”, inevitavelmente evocando a história narrada por São Mateus. A alusão à galinha que em cada manhã punha um ovo luzidio está ligada ao talento para cuidar dela. É que na história da galinha dos ovos de ouro, os seus donos, desejando ficar ricos da noite para o dia, esventraram o prodigioso galináceo na expectativa errada que assim antecipariam toda a riqueza que, com um pouco de inteligência, poderiam passo a passo construir. Confundiram a causa com o efeito e ficaram sem pau nem bola. Daí uma última observação: o talento é por natureza reprodutivo, e por essência inteligente e paciente. Por ganância e por ignorância os donos pouco talentosos mataram a galinha! Faltou a sabedoria de esperar pelo ovo de cada dia, a devida diligência para o levar ao mercado, e a paciência para enriquecer a prestações sucessivas, sabendo abrir mão de ficar rico num abrir e fechar de olhos. Por isso, mais uma observação: o talento é diligente, paciente e inteligente. A riqueza não se ganha como se a vida fosse um grande casino. Constrói-se com trabalho árduo ao longo de anos, com planos e objectivos exigentes inexoravelmente cumpridos.

O “plano intercalar” agora anunciado pelo Poder Executivo parece ir ao encontro desses talentos até aqui a marcar passo e a quem é subitamente dada a ordem de marcha. Trata-se de um verdadeiro catálogo de boas ideias que não dispensa a existência de bons intérpretes. Há muitos anos vi o filme do Fernão Capelo Gaivota, baseado num romance de Richard Bach que conta a história de uma ave costeira que ansiava por horizontes mais largos sonhando atingir velocidades nunca antes atingidas por uma gaivota. Com muita persistência e usando toda a extensão das suas penas e asas, adestrou arte de voar para alcançar o seu almejado objectivo. Foi a imagem de que há sempre um sonho para ser sonhado ou, como a banda sonora recordava, há sempre uma nova canção em busca de uma voz para a entoar... O “plano”, por muito vago e pouco quantificável que pareça, é antes de mais nada um programa a desafiar talentos capazes de o executar. Também no bando de Fernão Capelo Gaivota não havia de início um só companheiro que acreditasse nas incríveis metas que ele se propunha atingir. Porém, onde aparece um mestre surgem também discípulos aplicados. É verdade que em três meses não se muda tudo como numa acrobacia, mas podem e devem ser feitos exercícios de concretização e quantificação, tanto das receitas como das despesas do Estado a figurarem no próximo orçamento. Todos os Partidos Políticos e as Organizações da Sociedade Civil devem ser partes interessadas no enorme esforço a desenvolver para conciliar as necessidades do País com as suas disponibilidades. Vai ser muito difícil porque, como se verá, todos vão puxar a brasa à sua sardinha. Pensar nos que mais precisam implicará renúncias e perdas de regalias de que ninguém quererá abrir mão. A solução mais fácil é criar e aumentar os impostos e aumentar a dívida. Porém, as soluções mais fáceis nunca são as melhores, como aprendemos com Fernão Capelo Gaivota. Para além de que as soluções mais fáceis rapidamente se revelam perversas. Na verdade, por muitos e bons impostos que se criem, não haverá contribuintes que cheguem sem aumento de emprego e bons salários o que só se consegue com mais empresas e investimento privado. Por outro lado, mais empréstimos à custa da galinha dos ovos de ouro será meio caminho andado para lhe dar cabo da saúde o que só pode ser um mau prenúncio para ela e, por tabela, para todos nós.

Numa palavra, não será possível fazer-se uma reforma com anestesia geral, sem dor, sem gritos, nem protestos. A solução, finalmente, só pode ser encontrada na multiplicação dos talentos. Quem tem cinco tem de corresponder com outros tantos, assim como quem tem dois tem de apresentar quatro e quem tem apenas um deve apresentar dois ao senhor dos talentos. Aqueles que não empregam nem põe a render os seus talentos tornam-se autores de uma verdadeira traição e por isso o Evangelho os condena às trevas exteriores onde haverá choro e ranger de dentes. Ora, como diria o evangelista, há demasiados talentos enterrados, sem proveito para ninguém que têm de vir à luz do dia, custe o que custar.


 
 
 

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