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O país gradual


Há uma luta que Angola vem combatendo com constância e competência, integrando esforços do governo e da sociedade civil. É uma campanha persistente contra uma praga que só há pouco tempo vem dando sinais de algum cansaço e recuo. No primeiro dia de Dezembro, a Ministra da Saúde acompanhada pela Directora do Instituto Nacional da Luta contra a Sida, pelo representante da ANASO (Rede Angolana das Organizações dos serviços de Sida) e pelo Representante Residente do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) promoveu uma celebração do Dia Mundial da Luta contra a Sida em que tive a honra de participar. O momento alto foi o testemunho de Olívia, uma jovem infectada que desceu aos infernos da condenação à morte, da descriminação, do estigma e do preconceito para ressurgir para a vida com a motivação de dar a mão a tantos outros, que como a ela aconteceu, ainda jazem no fundo do poço do desespero. Para além dos antirretrovirais, afecto, carinho e amor são ainda os melhores remédios para curar não apenas o corpo como a alma dos que padecem desta pungente agrura. 280.000 identificados como infectados com o VIH, a que corresponde uma taxa de 2% de prevalência sobre a população total. Destes, apenas 69.841 beneficiam de terapia antirretroviral. O mais provável é que estes números sejam demasiado optimistas pois é de calcular que muita gente esteja infectada sem o saber e muitas crianças não sobrevivem à anónima herança fatal. Por isso, o lema deste ano é tão apelante como significativo: “Embora lá fazer o teste de VIH”. Testar e tratar são os dois comandos neste combate sem quartel. Condescendentemente, estabelece-se uma data para vencer a guerra: 2030. Tanto tempo para morrer! Mais dramático do que o tempo, porém, é o modo de progressão desta luta. Como tudo em Angola, ela começa em Luanda e depois “vai-se estendendo às províncias”. “GRADUALMENTE”. Esta foi a palavra de toque para a minha reflexão de hoje. Estou familiarizado com a expressão que tem até consagração constitucional a propósito das autarquias locais, em que o princípio do gradualismo se aplica não apenas relativamente à sua criação, como à transferência de atribuições para as autarquias que forem sendo criadas. Quer aquele princípio dizer que as autarquias poderão não ser criadas todas duma só vez mas haverá algumas que precederão outras relativamente às quais as primeiras serão uma espécie de cobaias ou, como também se diz, experiências piloto. Mas não só aí, no momento da criação, haverá gradualismo. Este manifestar-se-á ainda na passagem das competências para as autarquias que forem sendo criadas. Como se explicita na Constituição, “o alargamento gradual das suas atribuições, o doseamento da tutela de mérito e a transitoriedade entre a administração local do Estado e as autarquias locais” será determinado por lei. Embora figurando na Constituição de 2010, o preceito do gradualismo já existia no projecto constitucional de 2004, ou seja que a introdução do gradualismo quer quanto à criação das autarquias locais como quanto à transferência de competências e meios adequados para o seu exercício já remonta a treze anos atrás, tantos quantos faltam para se chegar a 2030. Ora, a gradual municipalização dos serviços de saúde e de protecção civil, de que muito depende o sucesso na luta contra o síndrome de imunodeficiência adquirida, não pode deixar de suscitar apreensão quanto ao cumprimento do princípio da igualdade segundo o qual nenhuma pessoa deve ter mais direitos à saúde do que outra. A quase inevitável assimetria deste combate sanitário será ainda por muito tempo geradora de desigualdades com consequência inimagináveis. O que se diz da luta no campo da saúde se deve dizer de outros combates, nomeadamente no campo da educação, relativamente ao ensino básico e gratuito para todas as crianças do nosso país, a quem o princípio do gradualismo por muito sensato que pareça não deixa de resultar gravemente discriminatório. É verdade, no entanto, que as tarefas fundamentais do Estado, como as de “promover o bem-estar, a solidariedade social e a elevação da qualidade de vida do povo angolano, designadamente dos grupos populacionais mais desfavorecidos” não estão, felizmente, à espera da criação gradual de autarquias locais. A própria Constituição prevê que a administração local do Estado precede o poder local e estabelece directrizes de transição de umas instituições para as outras. Acontece, porém, que o processamento gradual de todas as mais ingentes tarefas do Estado, seja no campo da saúde seja no campo da educação, é uma realidade de há muito condicionada pelos recursos humanos e materiais. Assim como um exército só avança até onde podem chegar os víveres e os cozinheiros, a progressão dos agentes do desenvolvimento têm os seus limites de expansão marcados também pelos meios disponíveis. Depois de Luanda, mesmo apesar da enorme concentração de problemas que a capital só por si representa, a intensidade da acção administrativa não é uniforme em todas as províncias agora e assim será a tendência no futuro quanto mais acentuada for a aplicação do princípio do gradualismo na criação das autarquias locais. Não temos por isso apenas um país com assimetrias regionais mas também um país em que as “condições necessárias para tornar efectivos os direitos económicos, sociais e culturais dos cidadãos” não serão criadas nem ao mesmo ritmo nem à mesma velocidade em todas as suas partes integrantes. Teremos pelo menos até 2030 um país gradual, o que não será necessariamente sinónimo de um país que trate com justa igualdade todos os seus cidadãos, principalmente os que mais precisam. O gradualismo arrisca-se a ser uma camuflagem de adiamento pois uma coisa é a introdução gradual amanhã de um sistema que devia ter iniciado há quinze anos. A felicidade e o bem estar são direitos de satisfação urgente ou, quando muito, de vencimento a curto prazo, o que será muito pouco conciliável com a sua promessa ainda por cima a pagar em prestações.


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