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Tempo conciliar


O Seminário contra a corrupção propagado urbi et orbe teve reminiscências de conclave conciliar, lembranças de um tempo em que os velhos dogmas são agitados para voltar a usar. Como a revelação de uma nova trindade chegaram aos nossos olhos e ouvidos maravilhados, ao vivo e a cores, a proclamação de um “Pai”, de um “Filho” e de um “Espírito Santo” ou “Paráclito”.

Coube ao Pai explicar o antigo testamento, a origem que partiu do dogma, tão caro aos mais velhos dignitários do Partido, de que só no MPLA havia salvação, estando condenados ao fogo do inferno todos os que não professassem a sua fé. Desde 1992, porém, que a nossa vida constitucional mudou substancialmente. Nessa data, com efeito, foi como se tivesse acontecido entre nós, um Concílio Vaticano II, uma abertura aos outros, aos que não partilhavam da mesma fé e a quem até aí fora negada toda a esperança. A bem conhecida posição católica tradicional até ao século XX, traduzida na fórmula latina Extra Ecclesiam nulla salus que literalmente quer dizer “Fora da Igreja não existe salvação” iria conhecer algumas inflexões de interpretação há muito desejadas mas sempre comprometidas pelo dogma da infalibilidade com base no qual aquela máxima foi pronunciada. O Concílio deixou, assim, entrar uma lufada de ar fresco se bem que, como todos sabemos, apenas condescendentemente admitiu que sim, podia haver salvação fora da igreja, mas tão somente para aqueles que, por ignorância desculpável aderissem ou tivessem aderido a outras confissões religiosas ou ideologias. Não deixa de ser semelhante o apelo do Presidente da República aos outros partidos políticos, às igrejas, às organizações não-governamentais, às associações sócio-profissionais, às organizações juvenis e femininas e às universidades.... porque, afinal, ele é (ou será) o rosto visível do partido que hegemonicamente se eleva a fonte única do poder divino. Tudo isto é metafórico, ou seja, não passa de uma comparação e por isso o “Paráclito” que aparece em forma de pomba no Novo Testamento ou sobre qualquer outra forma, nomeadamente, línguas de fogo, só por liberdade poética pode ser equiparado ao espírito do Partido que reina, efectivamente, sobre as nossas cabeças. Nem metaforicamente faltaram “cardeais” da linha dura relembrando o dogma de que “o MPLA é o Povo e o Povo é o MPLA” deixando assim, naturalmente, pouco espaço para a “crença” daqueles outros partidos ou simples cidadãos independentes que, por ignorância e em perfeita sinceridade e boa-fé não se revejam, nem tenham que rever, no partido que está no poder. A menos que se convertam, o que não me parece que seja de modo algum a intenção oficial do Partido. Na verdade, de que adiantaria convocar para o diálogo e para a cooperação os outros partidos e as associações apartidárias se só o MPLA for o Povo? O “Filho” foi muito claro no encerramento conciliar do Seminário ao abrir os seus braços a todos, ao convocar todas as forças vivas da Nação para com ele percorrerem um novo caminho, construírem o futuro! Mas não é ele o rosto do MPLA? Numa recente entrevista ao VANGUARDA, um dos seus “teólogos”, Vicente Pinto de Andrade, proclamou convictamente que “o rosto do MPLA é o do Presidente da República” e quem sou eu para duvidar de tal declaração mas, se me é permitido voltar às minhas metáforas e aos textos sagrados, recordarei as palavras de Jesus no Evangelho de São João: “Quem me vê a mim vê o Pai”. Na verdade, um pouco agastado com um dos seus discípulos, Ele diz: ”Estou há tanto tempo convosco e ainda não me conheceste?” (João 14.9). Há, no entanto, uma mudança entre o “velho” e o “novo testamento” que se vai tornando mais visível neste tempo conciliar em que as autoridades máximas do partido no poder se reúnem a nível nacional e local para discutir e deliberar sobre questões de doutrina e moralidade pública. Isso diz efectivamente respeito a todos, mesmo os que estão fora do seu redil. Por isso, este é um tempo de renovação da esperança e da fé no nosso País.

Parece-me claro, no entanto, que as preocupações continuam a ser, como na Igreja, mais de forma do que de substância. É o caso da preocupação com os dogmas (como o da exclusiva identificação com o povo) e a sua infalibilidade que é ilusória, bem como o desassossego com a “bicefalia” agora propalada e temida como se de uma heresia se tratasse, pondo em causa o sistema “monoteísta” do Partido no poder. Não deixa de ser curioso que, de repente, tantos seguidores dos mais diversos credos constitucionais, até aqui severos críticos da acumulação excessiva dos poderes presidenciais, estejam ansiosos em ver o actual Presidente da República acumular também, para além dos que já constitucionalmente possui, os de Presidente do Partido que o elegeu. Espera-se o próximo ano com a devoção de quem aguarda um Ano Santo! Ora em boa verdade, não decorre nem do nosso sistema presidencialista, nem da Constituição, nem muito menos dos Estatutos do MPLA que o Presidente da República deva ser o Presidente do Partido que o elegeu. É, portanto, lógico e oportuno meditar nas razões pelas quais parece tão desejável que o Presidente da República venha também a assumir em 2018 a cadeia de comando do MPLA. Embora de maneira subtil a explicação perpassou por esse momento conciliar em que se traduziu o Seminário sobre os desafios (ou tentações) a que estão sujeitos os titulares de funções públicas. O Presidente do Partido justifica a necessária moralização dos membros do Partido porque em última análise é ele quem “sustenta o governo”, entendido este em sentido amplo englobando o Poder Legislativo. E tem razão, porque em maioria absoluta, como sempre governou, são do MPLA as políticas e as iniciativas que constituíram as linhas do programa sufragado em eleições, bem como é dele que deverão partir as propostas de medidas para a sua plena execução. Embora o Poder Executivo, unipessoal e incarnado no Presidente da República não dependa do Partido para existir, o “espírito” do Partido é, por sua natureza, uma emanação do “Pai” e do “Filho” que não consente a mínima contradição (ou o “Paráclito” já não seria o que sempre foi). Compreendo que haja quem não entenda muito bem a velhice do Padre Eterno mas o nosso monoteísmo cristão também parece a muito boa gente uma forma de politeísmo. É o enigma da santíssima trindade, “mistério da nossa fé”.

Publicado no semanário VANGUARDA de 22 de Dezembro de 2017


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