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De Herodes para Pilatos


As palavras do Presidente da República ditas na conferência de imprensa ao fim dos seus primeiros cem dias, apesar do tom confiante e tranquilo com que foram mesuradamente pronunciadas, explodiram como uma granada que espalhou estilhaços pelo ar, vistos por uns como maravilha de fogo de artifício, por outros como farpas capazes de ferir algumas epidermes mais sensíveis.

Lembro que também Jesus, no início do seu mandato divino escolheu uma sinagoga para os seus primeiros ensinamentos e segundo São Marcos (1, 21b-28), “todos se maravilhavam com a sua doutrina porque os ensinava com autoridade e não como os escribas.” Um dos que o ouvia era um homem meio alucinado que aproveitou a ocasião para lhe lançar perguntas insidiosas: “Que tens tu a ver connosco? Vieste para nos perder?” Jesus mandou-o calar e atribuindo a invectiva à acção de um espírito impuro ordenou que a influência maléfica se apartasse do homem... Aparentemente, o homem imediatamente recuperou a compostura deixando a audiência de boca aberta que logo se foi articulando em murmúrios em que era possível pressentir o espanto e o receio confundidos: “O que é isto? Um novo ensinamento e com tal autoridade que até aos espíritos malignos dá ordens e eles lhe obedecem.”

Tal como naquele tempo, não faltaram os que manifestaram o seu júbilo por uma exteriorização que marca um novo estilo e uma nova atitude como também se ouviram sobretudo nas redes sociais aqueles para quem tudo o que for dito ficará sempre aquém dos seus desejos mais febris enquanto as palavras não se tornarem adagas e por elas escorrer sangue.

Mais de cinquenta exonerações, a declaração de guerra à corrupção e o repto ao investimento estrangeiro por nacionais angolanos que detêm fortunas no exterior alimentaram os primeiros cem dias. Agora os próximos cem dias terão de procurar noutras matérias o necessário alento e vibração. A restruturação da banca e da dívida, a diversificação da economia e, com toda a probabilidade, as cenas do próximo capítulo do processo contra o Eng.º Manuel Vicente, ex-PCA da SONANGOL e ex-Vice-Presidente da República. Embora se trate de um processo judicial é evidente que irremediavelmente se converteu num processo político. Isso nada tem de extraordinário. O próprio Jesus Cristo teve o seu processo e quem o condenou, um estrangeiro na sua terra, o governador Pôncio Pilatos, foi claro em dizer que não lhe encontrou culpa alguma! Por razões diplomáticas do poder romano cedendo às exigências do poder religioso dos judeus e de Herodes!

Tenho pena que Portugal não se tenha apercebido a tempo da politização deste caso e não tivesse lavado as mãos como Pilatos delegando a competência judicial a Angola. Teria, com base no acordo judiciário estabelecido no seio da CPLP, boas razões para o fazer: apesar do alegado crime ter sido praticado em Portugal, a nacionalidade e a residência do arguido Manuel Vicente eram dois elementos de conexão com a justiça angolana que até do ponto de vista da eficácia de uma eventual decisão condenatória aconselhariam a delegação da competência à justiça angolana. Perante os protestos de Angola, fundados na pretensa imunidade do arguido angolano, o Primeiro Ministro de Portugal pediu um parecer a um órgão superior do Ministério Público que depois nem homologou nem divulgou o conteúdo. Como tantas vezes lemos nos livros policiais nunca o advogado num cenário de julgamento deve fazer uma pergunta de que não saiba a resposta. Pode ouvir o que não quer. Não sei se foi exactamente o caso, pois a resposta neste caso seria tão previsível que fazer a pergunta desnecessária só contribuiria para tornar ainda mais quente a batata que o Primeiro Ministro tinha entre mãos. Perante as insistências de Angola veio a infeliz réplica do governo português, declarando do alto das suas conquistas de Abril que, em Portugal, havia separação de poderes. A resposta é obviamente ofensiva. O que Portugal permitia concluir com tal refutação é que em Angola essa separação de poderes não existia e, por consequência implícita, que a pretendida delegação de competência judicial não seria admitida.

Com exuberante celeridade judicial o processo em que é arguido o Eng.º Manuel Vicente já tem data marcada para este mês de Janeiro. Qualquer que seja o veredicto a pronunciar não creio que a justiça portuguesa fique bem. Em qualquer caso, ironicamente pior do que se o Eng.º Manuel Vicente fosse julgado em Angola. Cumpria-se o acordo judiciário da CPLP, evitava-se uma crise entre os dois países e o teste da real separação de poderes seria em Angola e não em Portugal. Alguém acreditará na separação de poderes em Portugal se o Eng.º Manuel Vicente for absolvido, como eu creio que o será?


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