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O outro Lourenço


É um dos personagens do meu livro DESCOMPASSO, Lourenço Mendes da Conceição, a mais sedutora personalidade de nacionalista angolano que me foi dado conhecer em conversas com amigos mais velhos e lendo tudo o que ele próprio escreveu e se encontra publicado nos empoeirados tomos encadernados da antiga revista da Liga Nacional Africana. Muitos desses escritos estão compilados numa modesta publicação de 2004 da actual Liga Africana sob o título UM VULTO DA LITERATURA ANGOLANA DO SÉCULO XX. Lourenço deu o seu nome à rua que está à esquerda de quem sai da Liga, a mesma onde foi atropelado por um condutor desaustinado que se pôs em fuga deixando prostrado e sem vida o corpo pequeno daquele que foi grande de alma e amou o seu povo do mesmo modo que amou a Deus. Transformado em nome de rua, muito poucos hoje o recordam. Eu reconstituí-o assim no meu DESCOMPASSO:

“Luanda – Coqueiros – Quarta-feira, 4 de Abril de 1962 – Manhã: Os primeiros raios de sol, ainda não abrasador mas quente como uma carícia, encontraram o homem de pé e em frente do espelho ajeitando a gravata florida ao colarinho impecavelmente engomado da sua alva camisa de linho. Aliás, a camisa sem uma ruga era o único luxo do velho director de fazenda, com sessenta e quatro anos de idade, o mais recente vogal da miniatura de parlamento da província de Angola, com a típica designação colonial de conselho legislativo. Apesar de ao espelho não se notar a sua pequena estatura, sobressaía a vivacidade dos seus olhos que quarenta e seis anos a verificar os números das contas gerais da província não tinham diminuído, uns olhos em que o brilho inquieto contrastava com os traços serenos do rosto. Reformava-se no final desse ano, da longa carreira de que muito se orgulhava. Muito esperou para que essa data chegasse para finalmente se poder dedicar com mais tempo às suas leituras, às suas reflexões e aos seus escritos. A sua eleição para integrar o conselho na segunda sessão legislativa apanhara-o completamente desprevenido... não porque houvesse outro filho ilustre da terra que merecesse mais essa distinção, mas porque Lourenço Mendes da Conceição tinha a plena consciência de que as autoridades coloniais não podiam deixar de ler, por entre a subtileza e delicadeza das palavras de seus vários pronunciamentos, o inequívoco pensamento que lhe ocupava a mente no sentido de uma independência total e absoluta do seu país”. Muitos foram esses seus pronunciamentos sempre lúcidos e corajosos como dele seria de esperar. O primeiro data de Novembro de 1941, o ano em que eu nasci, e tinha um título extraordinário: “A posição de Angola na história de Portugal” (DESCOMPASSO, p 114). Voltando, porém, àquele dia 4 de Abril de 1962, ...”Lourenço Mendes da Conceição inspirou profundamente e repensou as imensas responsabilidades que sobre ele recaíam e às quais nunca se negaria, dando o melhor de si, do que sabia e podia. Olhou-se novamente ao espelho e confirmou que estava tudo bem... Pronto para sair. Vivia só... Não tinha mulher a quem desse um beijo de despedida e dela ouvisse uma palavra de encorajamento, nem crianças para afagar a testa, recordando-lhe as obrigações de lhes deixar um legado que se considerasse substancial. Era melhor assim, pensou, transpondo voluntariosamente o umbral da sua modesta residência no bairro dos Coqueiros.... Todos os angolanos eram seus filhos, e era por eles que falaria na primeira sessão do conselho legislativo daquele ano de 1962, sob a presidência do general Venâncio Augusto Deslandes, cujo retrato estava pendurado há dois meses numa das paredes da sua Liga Nacional Africana, que desde então, lhe merecia ao passar uma breve e silenciosa reverência” (DESCOMPASSO p. 115).

O pano de fundo deste meu livro é uma projecção da ferramenta de elevação dos angolanos à sua independência real, ou seja, o seu ensino, desde a primeira escolarização até à universidade. O pretexto para o enredo do livro parte da ideia do governador Deslandes querer criar em Angola, em 1962, uma universidade que permitisse habilitar os filhos da terra a governarem-se a si próprios. Deslandes tinha a noção de que se tratava de uma corrida contra-relógio. O atraso que encontrou e a desigualdade de tratamento entre os filhos da terra e os filhos dos colonos relativamente ao ensino superior deixou-o chocado mas empolgado em vencer o atraso. As várias visões sobre este desígnio dividiram, porém, não só as hostes do governador e as do governo em Lisboa mas, também, suscitaram a polémica com Lourenço Mendes da Conceição que ficará para a história por ter sido o único membro do conselho legislativo a votar contra a proposta do governador, impedindo a sua aprovação por aclamação. Vale a pena viajar no tempo e rever essa sessão memorável que teve lugar no incipiente parlamento colonial, reunido no salão nobre do Museu Nacional de Angola, junto ao antigo Largo da Maria da Fonte: “Um aplauso frenético e prolongado de toda a assistência coroou as últimas palavras do governador e presidente do conselho, o que, tudo o indicava, pressagiava uma unanimidade e subsequente aclamação da proposta de criação do ensino superior. Os discursos que se seguiram apontavam todos nesse sentido, incluindo o muito ponderado raciocínio do vogal presidente da Liga Nacional Africana que falou da recuperação do tempo ingloriamente perdido... Mas aproximava-se um inesperado balde de água fria! Tem a palavra o vogal senhor Lourenço Mendes da Conceição!”(DESCOMPASSO, p.120)

Com o início de mais um ano escolar, iremos assistir dentro de dias à restauração do Liceu que historicamente ligou o seu nome a outro restaurador. Devolvido ao seu antigo esplendor, não faltarão discursos e aclamações. Não faltarão referências ao esperado ensino de qualidade num edifício de tanta qualidade... No entanto, como todos sabemos, neste ano lectivo de 2018, milhares de crianças ficarão, ainda, sem estudar. Alguém olhará o relógio e relembrará as palavras do governador: “Angola não pode perder um minuto do seu precioso tempo” (DESCOMPASSO P. 45). Em 1962 Lourenço Mendes da Conceição preferia que todos aprendessem a ler, a escrever e a contar e que os melhores alunos fossem com bolsas estudar lá para fora para serem doutores, médicos e engenheiros de verdade e não técnicos superiores feitos à pressa. Hoje é diferente, mas continua a ser difícil fazer tudo bem ao mesmo tempo: ensino primário, secundário e superior. Pode-se fazer bem o primeiro e o segundo sem o terceiro – o objectivo ficaria incompleto, mas não se pode fazer bem o terceiro sem fazer bem o primeiro e o segundo... o resultado seria defeituoso. Na certeza de que enquanto o primário não for realizado na sua universalidade persistirá a terrível angústia de se estar, em pleno século XXI, a fazer discriminação no ensino.

O que diria na circunstância Lourenço Mendes da Conceição?

Publicado no VANGUARDA de 10 de Fevereiro de 2018

E-Mail do Editor: pas@holos.pt

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