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O nosso Profeta

  • Onofre Santos
  • 2 de mar. de 2018
  • 4 min de leitura

Cumpriu-se no passado dia 24 o centenário do nascimento de Simão Gonçalves Toco, cuja doutrina abria em meados do século passado uma nova via para os africanos se encontrarem com Deus. O mesmo Deus dos judeus, dos cristãos, católicos ou protestantes e do muçulmanos. No meio de um congresso missionário (Conferência Missionária Internacional Protestante) realizado em 1946, na localidade de Kalina, no antigo Congo Belga, Simão Toco e o Reverendo Gaspar de Almeida foram convidados a implorar a Deus que desse a civilização a todos os seus irmãos de África e que o Espírito Santo descesse também sobre todos os africanos. Os próprios missionários, belgas e portugueses (incluindo missionários angolanos como o Reverendo Gaspar de Almeida), deviam estar, naquele tempo, à beira do desespero ante o fosso de subdesenvolvimento quase insuperável, para lhes dirigirem tão singular exortação. Um e outro, profundamente imbuídos de fé, elevaram então os seus olhos e mãos numa prece que até hoje perdura porque o tempo de Deus não obedece aos ponteiros de nenhum relógio. Coube a Simão Toco invocar o Espírito Santo e a partir desse momento, o seu coração nunca deixou de irradiar luz. Parece ironia da história mas, Simão Toco, ajudante de missionários em Kibocolo (cerca de Maquela do Zombo) e posteriormente em Leopoldoville (actual Kinshasa), se visse convertido, pela força das circunstâncias e das autoridades coloniais, em faroleiro na Ponta Albina em Porto Alexandre (Tômbua) e mais tarde em São Miguel nos Açores!

Como, porém, os caminhos de Deus são misteriosos, entre um farol e outro, Simão Toco, reconhecido por todos como um homem iluminado, foi chamado pelo governador colonial para a incumbência de chamar de volta ao território angolano aquele povo que na sequência do início da luta de libertação se tinha refugiado para lá da fronteira do Uíge. A sua palavra, o seu exemplo e o incitamento que dele dimanava ia juntando os regressados formando com eles uma comunidade que procurava trabalhar mas sobretudo orava e cantava. Simão Toco era um amante da música coral e já em Leopoldoville formara um coro que logo se tornou famoso a que chamou Coro de Kibocolo evocando a sua aprendizagem coral na missão baptista de Kibocolo e Bembe. Simão Toco e mais cem refugiados acabaram a fazer agricultura no Vale do Loge, uma ocupação de molde a tranquilizar as autoridades coloniais que, se por um lado lhe agradeciam a congregação de tantos dos seus irmãos, ao mesmo tempo temiam o poder de atracção daquele homem singular. Trabalhar com a sua gente era, aliás, o desejo expresso de Simão Toco que se via como Moisés a conduzir o povo à nova Canaã, onde também correria o leite e o mel, em forma de melhores condições de vida para ele e para os seus seguidores, sem nunca deixar de lhes lembrar os mandamentos de Deus e cantando-Lhe hinos de louvor.

Agostinho Neto tinha sido seu colega no Liceu Salvador Correia, onde Simão concluiu o 1.º ciclo (quem ler o meu DESCOMPASSO – a páginas 78 e ss - pode achar ali um episódio ocorrido entre os dois ainda adolescentes), porém, quando em 1974 o faroleiro de S. Miguel retorna a Angola – o regresso do Profeta – confessa a respeito dos Movimentos de Libertação: “... francamente, não posso mentir, não sei o que possa dizer, nunca falei com eles, nunca me reuni com eles, não sei a ideia deles... a minha ideia é religiosa...” Simão Toco apenas queria através da descida do Espírito Santo que todos os africanos e, desde logo, os angolanos, se libertassem das grilhetas da ignorância e do subdesenvolvimento, encontrassem trabalho condigno para terem pão na mesa para toda a família, escolas para as crianças e hospitais para os doentes. Creio, ao evocar nesta data o nosso Profeta, que aquele seu programa constitui o ideal da religião que fundou e propagou, pregando, rezando e cantando, a mesma doutrina de fé em Deus, o Deus de Abraão que salta das páginas da Bíblia para a vida dos que, mais numerosos que as areias do mar, o continuam a seguir. Com efeito, Simão Toco percorreu os caminhos de África como outrora os profetas do Antigo Testamento, acreditando no mesmo Jesus dos católicos e protestantes, tal como nas arábias, quinhentos anos depois de Cristo, um outro homem inspirado se viu alcandorado à qualidade de último profeta. Descontando a presunção ingénua de quem se considera o último (nunca alguém pode dizer que o será pois o futuro só a Deus pertence) o programa de Maomé também pode ser considerado no que respeita à vida e à moral, um programa simples, sensato e tolerante. Tal como o Cristianismo e o Islão, o Tocoísmo não é a religião de um povo apenas ou de uma só nação, mas uma religião para todas as pessoas, uma religião da moral, da paz e da ordem. Isso o devem reconhecer hoje as autoridades do nosso País, cujos representantes estiveram presentes à celebração comemorativa do nascimento de Simão Toco. A sua presença só pode traduzir empatia, compreensão, até simpatia e mesmo alguma afinidade, pois, sem prejuízo de a doutrina tocoísta ser uma religião de prece pela elevação da condição dos africanos em geral, aparentemente esquecida por Deus, aquela súplica, teve em vista como primeiros beneficiários os seus compatriotas angolanos. Falando sobre a necessidade da justiça no mundo, Simão Toco esclarecia: “eu sou um homem religioso, mas também sou um homem social... não estou contra o Estado”... e certamente acrescentaria que por sua vez o Estado não podia estar contra o homem angolano que ele logo descrevia: “velhos, velhas, homens, mulheres, rapazes, meninos, meninas, crianças”, quantas descuradas nos horizontes desta Angola tão grande e tão prodigiosamente rica mas ainda à espera que integralmente se cumpra a oração do nosso Profeta.

Publicado no VANGUARDA de 3 de Março de 2018

 
 
 

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