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Boa Páscoa?


Para os cristãos angolanos, de todas as confissões, e são muitos milhões, esta semana teve um significado diferente. Nela se comemorou o sacrifício de um homem que por falar verdade morreu numa cruz, como qualquer malfeitor que pusesse em perigo a ordem do império. Ele tinha mostrado, no entanto, de maneira peculiar, que não confundia a sua verdade com a política. Para os que o queriam comprometer perguntando-lhe se deviam pagar impostos à potência ocupante, ele pedia-lhes uma moeda e perguntava de quem era a efígie que nela aparecia cunhada. Depois da resposta pronta testemunhando que a imagem nela gravada era a de César logo lhes retorquia, não sem alguma ironia, apelando para um valor muito importante em Jesus, a coerência: “Pois então dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. No entanto, a sua condenação ficaria ligada a uma rebeldia contra o establishment romano visto que o governador Pôncio Pilatos que em nome do imperador em Roma o condenou, fez questão de publicar a razão da sentença de morte mandando colocar no alto do patíbulo o letreiro com o fundamento penal de Jesus ser o “rei dos judeus”. Os chefes judeus ficaram bem irritados e pediram ao governador que mandasse corrigir que ele não era mas que se intitulava rei. O governador romano não teve contemplações para com aqueles que o usaram para condenar o seu perseguido religioso bem sabendo que ele só tinha autoridade para condenar por motivos políticos. Incoerentes, deve ele ter dito ou pensado para com os seus botões.

O que nunca passaria pela cabeça daquele governador de uma remota província imperial era que aquele condenado se libertaria das leis da morte e a sua palavra chegaria a Roma. Trezentos anos depois, um outro imperador proclamaria a religião do nazareno como oficial do estado romano o que, à época, a tornou praticamente universal (a pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular). Uma longa história, a mais fascinante de todas as histórias, ilustrando bem a parábola do grão de mostarda que tem de morrer para depois germinar, florescer e se tornar numa árvore tão frondosa que nela podem procurar abrigo as várias aves do céu!

Pouco antes de ser detido pelos que o vieram prender, Jesus estivera reunido à mesa, saboreando com os seus mais próximos companheiros um borrego bem assado e com muito molho para nele ensopar o pão, uma refeição descrita como a “última ceia”, significando ela ter acontecido depois de muitas outras refeições com os seus amigos durante a sua jornada evangélica. Jesus chegou a ser acusado pelos fariseus de glutão e beberrão, mas ele compreendia que era à volta de uma mesa, com boa comida que poderia haver fraternidade e comunhão.

Aquela ceia, contudo, era de festa, pois estava-se na altura da páscoa do Senhor, recordando a libertação dos israelitas do poder egípcio. Páscoa queria dizer “passagem”, aludindo à saída do cativeiro para a liberdade. Por isso era tradição judaica comer-se assado o cordeiro imolado e sangrado de véspera, temperado com ervas amargas e acompanhado de pães ázimos, mas de pé, revivendo a pressa que antecedeu a fuga desordenada diante das hordas do faraó. Jesus preferia uma refeição sossegada, aproveitando o tempo que ele bem sabia não seria muito para gozar. Outra coisa que ele fez durante essa ceia escandalizou alguns dos discípulos. Levantou-se da mesa, tirou o manto e com uma toalha à cintura deitou água numa bacia e começou a lavar os pés dos seus comensais. Um deles, Pedro, ripostou que nunca consentiria que ele lhe lavasse os pés. Jesus respondeu-lhe, então, que se não os lavasse ele não teria lugar ao seu lado. É claro que Pedro, impetuoso como sempre, logo ripostou que então não lhe lavasse só os pés mas também as mãos e a cabeça. Jesus com a sua habitual ironia informou que esperava que eles tivessem todos tomado banho e estivessem todos limpos e que ele só precisasse de lhes lavar os pés da poeira dos caminhos. Um gesto que eles haviam de perceber mais tarde., quando se pusessem a caminho por terras cada vez mais longínquas e gente estranha a quem chamavam gentios.

A ceia ficou para nós como o sinal dessa comunhão que até hoje se repete diariamente numa celebração dessa refeição memorável em que Jesus nos deixou o pão e o vinho em testamento. O novo testamento transformou a páscoa antiga, restrita ao povo judaico, estabelecendo-a para toda a humanidade. Também aqui foi instituída uma “passagem” espantosa e que revolucionou as bases do próprio império romano: a passagem da desigualdade para a igualdade dos filhos de Deus. Cada eucaristia, cada celebração, é uma reunião à volta de uma mesa na esperança de, sem excepção ou discriminação, todos ficarem saciados. Não apenas espiritualmente mas materialmente. Nem mesmo à multidão que o seguira na subida à montanha para lhe ouvir o sermão e as bem aventuranças Jesus a despediu de barriga vazia. Todos conhecem o milagre da multiplicação dos pães e de alguns poucos peixinhos do mar da Galileia.

Cabe hoje às nossas igrejas tendo Jesus Cristo no centro da sua crença, repetir o milagre. Não esqueçamos que todas elas funcionam em rede social, uma rede de proximidade real com todas as pessoas, homens e mulheres, novos e velhos, compatriotas e emigrantes, ricos e pobres. Delas se pode dizer que todo o povo desta nossa terra é o seu próximo. São elas que ensinam as nossas crianças onde não há ainda escolas do Estado, são elas que acolhem os velhos e doentes que precisam de tratamento e alimento lá onde também esses cuidados ainda não chegam. Antes da independência todos reconhecem o contributo extraordinário das igrejas para a elevação do homem angolano e para a salvaguarda da sua dignidade. As nossas autoridades religiosas das diversas confissões continuam hoje o trabalho dos apóstolos, discípulos, pastores e profetas para que Jesus não tenha morrido em vão.

Publicado no VANGUARDA de 6 de Abril de 2018


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