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Toma lá as autoridades tradicionais!


Há coisas que uma vez ouvidas ficam gravadas para sempre na nossa memória. É o que se passa com a expressão usada pelo Conselheiro Raul Araújo, numa palestra proferida vai para vinte anos, a propósito do primeiro projecto de alteração da Lei Constitucional de 1992. Nessa altura, os membros da comissão constitucional tinham chegado a pensar num sistema bicameral para a nossa Assembleia Nacional, ficando uma das Câmaras reservada às autoridades tradicionais, de algum modo evocando a câmara dos lordes no reino britânico. Pois, o que o Doutor Raul Araújo disse referindo-se à solução a que finalmente chegara a comissão foi que em vez de duas câmaras se optara por “uma câmara e meia”. Em que constituía essa “meia câmara”? Descontada a ironia, seria um órgão consultivo e não permanente junto da Assembleia Nacional que deveria ser ouvido obrigatoriamente sobre um certo número de matérias relativas à mundividência das nossas comunidades tradicionais. Não seria uma câmara alta, uma câmara com poderes deliberativos mas, em todo caso, um conselho reunindo os dignitários representantes das entidades de quem depende a manutenção da ordem social nesse patamar local onde a governação do Estado não consegue chegar. Esta concepção voltou-me à memória esta semana disparada pela notícia de que os ministros da Administração do Território e Reforma do Estado e da Cultura, tinham assinado um Termo de Transferência de Tutela do MAT para o Ministério da Cultura, das questões atinentes às Comunidades e Instituições do Poder Tradicional. Este “trespasse” de atribuições, tal como apresentado pela notícia, assenta na necessidade de melhorar o trabalho com as autoridades tradicionais nomeadamente para efeitos de um cadastramento que impeça a sua proliferação descontrolada e indevida.

Não cabe nesta reflexão a legitimidade para a transferência de competências entre ministérios acompanhadas ou não dos recursos humanos e materiais para sustentação do seu exercício. Apenas lembramos que as autoridades tradicionais, com toda a autonomia que lhes é reconhecida pela Constituição e pelo costume, desempenham, similarmente, ao nível das povoações, funções implícita ou explicitamente delegadas pela administração local do Estado, devendo manter-se um vínculo de ligação entre elas e os administradores comunais e municipais e os governadores provinciais. Este vínculo justificaria, salvo melhor opinião, que a tutela que a Constituição prevê no seu artigo 225.º se mantivesse no MAT, se não devesse mesmo ser directamente assumida pelo Presidente da República.

Qual será agora o futuro dos nossos 21 reis e rainhas, 1 801 grandes sobas, 10 309 sobas e 19 704 seculos?

A questão mais importante que se põe para futuro é a de saber em que medida o poder tradicional pode vir a ser de tal modo limitado pela lei nas suas relações com a administração local do Estado e brevemente com a administração autárquica que se percam todos os vestígios dos seus históricos atributos em benefício da sua ordinária funcionalização. Por outras palavras, serão as autoridades tradicionais conciliáveis com a inevitável modernização do Estado a todos os níveis, desde as cidades até às suas mais recônditas povoações? A passagem da “tutela” do MAT para o Ministério da Cultura, é um sinal, talvez meramente equívoco, de que elas vão a caminho de se tornarem peças do nosso riquíssimo património cultural, correndo o risco da sua (gradual) passagem à história!

O Ministro da Administração do Território e da Reforma do Estado ponderava há dias que as autoridades têm aumentado para números que extrapolam das estatísticas e já superam as 40 mil autoridades tradicionais espalhadas por Angola. O Estado dispõe, no entanto, de um recente e actualizado censo populacional que regista com precisão o número de povoações que constituem por excelência o território de actuação das autoridades tradicionais. Nessas 40, 50 ou 60 mil povoações quem é que realmente administra as respectivas comunidades se não o chefe tradicional, aquele que aos olhos dos seus súbditos é o legítimo herdeiro do poder político local?

Relendo a indispensável tese de doutoramento do Prof. Doutor Carlos Feijó, que defende não só o dualismo de ordenamentos jurídicos em Angola bem como o dualismo de uma administração local legitimada ora pela lei (e pelo princípio democrático) ora pelo costume (e pela tradição), concluímos pela existência de uma vasta zona de contacto entre os chefes tradicionais e as autoridades administrativas municipais e comunais. Isto é assim porque as autoridades tradicionais, para além das suas funções tradicionais baseadas no direito consuetudinário, vão cumprindo, também, múltiplas funções que decorrem da lei e pelas quais são efectivamente remuneradas. Esta natureza também dualista das nossas autoridades tradicionais permite inseri-las num especial patamar da administração local do Estado. Por uma questão de conformidade elas deveriam estar igualmente representadas no recentemente inaugurado Conselho da Governação Local e, por arrastamento do referido “trespasse” de atribuições, dar igualmente assento à Ministra da Cultura nesse órgão colegial auxiliar do Presidente da República.

Finalmente, será ainda necessário distinguir a cultura da eficiência no exercício das funções de direcção das comunidades tradicionais. O afã, a todos os títulos louvável, de promover a formação dos futuros autarcas não deveria estender-se com muito mais necessidade e utilidade imediata às nossas autoridades tradicionais? Nas minhas missões eleitorais noutros países africanos tive a ocasião de testemunhar que a maioria dos seus paramount chiefs frequentara cursos superiores e mandavam os seus filhos estudar nas melhores universidades porque um dia lhes caberia exercer o poder nas suas comunidades tradicionais. Fica a nostalgia de um futuro que veja chegar à Assembleia Nacional, descendo das suas viaturas protocolares, com a mesma dignidade dos Conselheiros da República, as majestades que integram a nossa identidade histórica.

Publicado no VANGUARDA de 13 de Abril de 2018


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