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O céu pode esperar...


O inferno não existe, teria dito Francisco I em conversa relatada pelo seu velho amigo jornalista Scalfari, no jornal La Repubblica de que é o fundador, e tanto bastou para se levantarem ondas de alvoroço no Vaticano. Um comunicado oficial esclarecia que não se tratara verdadeiramente de uma entrevista e o que apareceu publicado não correspondia à transcrição fiel das palavras do Santo Padre. Entender de outro modo significaria que o Papa entrara em ruptura profunda com a doutrina cristã. Mas será mesmo essa a doutrina cristã? A pergunta é legítima porque Jesus nunca disse que havia um inferno, nem isso aparece mencionado em alguma parte do Novo Testamento. O que aparece nos Evangelhos é que os demónios andam é cá pela terra a importunar os viventes, a começar pelo próprio Jesus que por três vezes foi tentado no deserto ao longo de 40 dias! E depois, como se menciona em várias cenas evangélicas, ele próprio os expulsou de criaturas atormentadas por tais espíritos satânicos, como foi o caso de Maria Madalena, que passou a ser sua infatigável seguidora e discípula. O inferno foi no entanto tantas vezes descrito e até pintado por grandes artistas, revelando-se como a mais eficiente e definitiva ameaça pairando sobre as cabeças dos mortais que, agora, se torna muito difícil contradizer a sua existência. Tenho mesmo dúvidas se haverá vantagem nesse desmentido que redundaria em benefício exclusivo dos desobedientes relapsos à vontade de Deus para quem será um alívio saber que, apesar de todas as maldades que possam ter cometido, escaparão a esse inexorável castigo. Scalfari, do alto dos seus bem vividos 93 anos de idade, apesar de se confessar ateu, deve ter visto na bonomia obsequiosa do seu amigo Francisco um certificado de imunidade com vistas a uma já não muito longínqua passagem para o outro mundo. É claro que seria muito mais grave se o Papa lhe tivesse dito que também o céu não existe! Mas é diferente: podemos dizer com alguma probabilidade de acertar que o inferno é aqui na terra, durante as nossas vidas.... mas o céu não é de certeza... e o pior, é que mesmo assim, até para os crentes mais devotados o céu pode esperar!

Esta semana, mísseis disparados por três grandes potências, ditas cristãs, atingiram solo vizinho da terra santa, à volta de Damasco, a cidade a caminho da qual se converteu Saulo de Tarso que se tornaria Paulo o grande apóstolo! A Síria continua a ser governada pela minoria islâmica alauita, apoiada pela poderosa Rússia, herdeira da Igreja Cristã Ortodoxa que floresceu em Constantinopla e também pelo Irão dos aiatolas xiitas. Um conflito onde estão representadas todas as religiões proféticas, as três reclamando a sua descendência do mesmo pai Abraão! Sob diferentes bandeiras são irmãos contra irmãos recriando nesse cenário dantesco um verdadeiro inferno para que ninguém tenha dúvidas que é aqui, bem perto de nós, que ele existe! Aliás, há séculos que o inferno ciclicamente aflora, como uma previsível estação do mal, quando os grandes potentados, de hoje e de antigamente, sempre com grandes e santificados fundamentos, decidem levar à cena a sua própria versão do Apocalipse.

Sobra o céu, essa realidade transcendente e invisível que filósofos e teólogos incansavelmente mergulham no mais profundo pensamento por conhecer e imaginar. Já não em busca dos contornos intemporais do castigo irreversível mas do prémio eterno justamente destinado aos que confiam na bondade infinita de Deus! O Papa Francisco na sua linguagem simples e modesta, despida de altas filosofias o que terá dito a Scalfari é que ficar esquecido para sempre em qualquer apeadeiro a caminho do céu pode ser infernal!

Em Angola começamos agora a descobrir que o nosso céu, a realização das grandes promessas de prosperidade para todos, os dividendos da paz depois de uma guerra fratricida em que tivemos também a nossa quota parte do inferno, terá, também, que esperar. Aliás, tudo isso e o céu também, é cada vez mais uma questão de fé. Em época de vacas magras desde há vários e prolongados anos, bem podemos esperar que o médio oriente expluda, para os preços do petróleo voltarem a subir e o maná, como primícia celestial, volte a cobrir a nossa terra com o seu manto glorioso. Até lá continuaremos apegados ao mantra que repetiremos até à exaustão na expectativa (implícita) de uma intervenção divina: a diversificação da economia, o investimento estrangeiro, o repatriamento de capitais, a luta contra a corrupção, as autarquias, a reforma do Estado...

Ora, não é preciso ser profeta para prognosticar que tudo aquilo leva demasiado tempo a realizar, e que não haverá estado de graça que resista, a menos que se decida delinear e aprovar um plano mais simples e compreensivo para fazer o que realmente é preciso: deixar de importar tudo o que pode ser produzido localmente, a começar pelos produtos básicos da nossa alimentação, criando equipas sectoriais para assegurar no terreno a produção de todas essas necessidades, produto por produto. Uns entrando com a terra de que sejam proprietários, outros com o seu trabalho, outros ainda com o financiamento, de modo a assegurar a uns e a outros uma justa remuneração para o tempo que anteceda a produção, de acordo com calendários adequados e aprovados. Atesta o livro do Génesis que o nosso Deus bondoso, misericordioso e justo (não o esqueçamos) nos orientou a ganhar a vida com o suor do rosto, ou seja com muito esforço, nosso, e não dos outros, como muitos, infelizmente, têm interpretado a Escritura! Pois, é tempo para esse despertar da força, com fé na nossa terra e na nossa gente, em que todos, sem excepção, de um modo ou de outro, devemos apostar. Sem rancores, com menos espírito de desforra, mas com muita vontade, humildade, esforço e empenho, porque tão cedo não será o dinheiro desviado ou ainda não revertido, nem os corruptos na prisão, nem os futuros autarcas que nos vão dar mais emprego ou pôr comida na mesa de todos os angolanos. O céu pode esperar... Angola não!


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