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O longo caminho para a santidade


No dealbar do século XIII, em 1206, reinava imperialmente em Roma Inocêncio III, o papa que como nenhum outro atingira o cume da montanha do poder, tanto espiritual como material. Logo na viragem do século ordenara as quartas cruzadas que iriam derrubar o poder em Constantinopla e fazer do papa o verdadeiro “senhor do mundo”. No entanto, naquele ano, o sono de Inocêncio agitou-se e ele teve um sonho, em que a sua grandiosa catedral de Latrão, a sua igreja, apenas não desabava graças à intervenção miraculosa de um pobrezinho...

O curioso é que, não longe dali, na pequena cidade de Assis, um jovem fogoso, filho do rico mercador Bernardone sonhara também, mas com Jesus crucificado que lhe pedia que reconstruísse a sua igreja em ruínas... Giovanni acordou alvoroçado, associando o sonho à modesta igreja de São Damião pela qual ele passava a galope quando pela madrugada regressava dos seus folguedos mundanos, sem prestar especial atenção às suas paredes caídas ou ao altar exposto às intempéries.

A partir daí decidiu mudar de vida, de uma forma absoluta e radical. A sua ideia era nascer de novo, do modo como Jesus explicara a Nicodemos. Ficou célebre o seu despojamento, em plena praça de Assis, de todas as finas roupas que vestia, ficando tal como viera ao mundo. Cobriu-se depois de burel, um tecido grosseiro que seria o figurino do hábito dele e dos companheiros que iria recrutar entre as suas amizades e pelas vizinhanças. O objectivo era o de trabalharem como pedreiros reerguendo, tijolo a tijolo, esforçadamente, a velha capela arruinada. Ao mesmo tempo oravam e pregavam, perambulando pelas pequenas comunidades em redor pregando a boa nova de Jesus que não perdera em nada a sua novidade face aos abusos da poderosa hierarquia religiosa. Quando precisassem pediam esmola. O seu voto era a pobreza mesmo, a humildade e a simplicidade. Com estas características e com regras bíblicas lembrando os primeiros tempos do cristianismo, Francisco, assim se passou a chamar porque nascera de novo e a sua nova vida merecia um novo nome, encontrou as maiores dificuldades em conseguir a aprovação papal para a sua ordem, mesmo chamando-a de “menor” para expor a sua insignificância no conjunto incomensurável da Igreja.

Podemos imaginar a curiosidade de Inocêncio III, do alto do seu trono pontifício, envolto nas suas vestes brancas e resplandecentes, a cabeça coroada pela preciosa mitra, os sapatos bordados a fios de ouro, o cajado do bom pastor travestido em ceptro imperial, ao receber em audiência aqueles irmãos quase andrajosos, rojando-se aos seus pés como humildes suplicantes da aquiescência papal para as suas regras de vida. Como negar a coincidência entre a presença daquele frade mendicante com o pobrezinho que em sonhos impediu o desabamento da sua portentosa basílica em Latrão?

Embora Inocêncio soubesse que a sua Igreja carecia de reformas, foi um pouco supersticiosamente, por causa do seu sonho, que não condenou logo Francisco como herético que era o que mais havia a esperar naquele tempo. Por outro lado, Francisco reconhecia sem hesitações o primado do papa e da sua Cúria talvez esperando que teria de ser assim até que chegasse o dono da seara separar o trigo do joio.

Passaram, entretanto, sete séculos. Há meia dúzia de anos, Mário Jorge Bergoglio, cardeal em Buenos Aires, foi eleito papa e surpreendentemente escolheu para o seu pontificado o nome daquele monge que ouvira de Jesus a exortação de reconstruir a sua Igreja... O nome soou como uma badalada premonitória, tudo passando a indicar que, à semelhança do poverello de Assis, ele viera para transformar a Igreja sem revolução, pacificamente, encaminhando todos, as ovelhas boas e as ranhosas para um só redil. Jesus dizia que ele era o caminho. O Francisco actual também nos quer mostrar esse caminho. Todos notaram como recusou o manto de veludo real debruado a arminho e os sapatos vermelhos que substituíram as sandálias do pescador, dois sinais de uma altivez que pouco a pouco se esvai. Tal como no tempo de Francisco não é tanto de reforma que a Igreja mais carece mas de transformação. Enquanto uma requer a separação das águas, a outra promove a transfiguração. Isto não depende nem da mudança das instituições nem de pessoas. Depende muito mais da mudança de atitude de cada uma delas.

Lendo as notas de Mandela escritas já depois de ele se ter retirado da vida pública, é inspirador constatar como ele teve a nítida consciência de ter herdado uma máquina de Estado extravagante e defeituosa mas de que não se podia livrar, como aconteceu com muitos países, como Angola, que ascenderam à independência despachando de volta às origens os seus colonizadores. Também ele se apercebeu, à semelhança de Francisco no Vaticano, que a anterior administração e os seus apoiantes, não eram estranhos no ninho, ou um bando de ocupantes ilegítimos. No seu caso, era evidente que os administradores do apartheid não eram, um complemento de uma qualquer potência colonizadora. Os seus “colonizadores”, por assim dizer, estavam na sua própria casa, “a África do Sul era a sua casa”. Entendia, por isso, que o caminho a seguir passava por garantir que os funcionários do anterior regime fossem aceites e passassem a desempenhar um papel na nova democracia...” Mandela advogava uma transformação radical mas decidiu fazê-la com a inteira colaboração de todos os responsáveis, os antigos e os novos. Bem sabemos como foi idealista este modo de ver mas, naquele momento decisivo da vida do seu país, foi a pedra de toque de uma era que tornou o mundo diferente e para bem melhor embora estejamos tão longe da perfeição! Como ele escreveu, e podia ser uma transcrição de Francisco, o mais admirável era “a combinação de talento e humildade, para estarem a viver juntos na mesma casa pobres e ricos, fracos e poderosos, pessoas comuns e da realeza, novos e velhos, homens e mulheres, indiferentemente da sua raça ou do seu passado”

“Não obstante a brutalidade do sistema do apartheid em geral, e da polícia em particular, durante o período pré-eleitoral, pedi ao meu povo que esquecesse o passado, promovesse a reconciliação e a transformação da nação” lê-se também em A Cor da Liberdade – Os anos da Presidência, de Nelson Mandela e Mandla Langa, Editora Marcador 2017).

Publicado a 27 de Abril de 2018 no VANGUARDA

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