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As eleições de 1992 e a história


Colóquio Internacional do MPLA sobre a sua História, em Luanda a 6 de Dezembro de 2019

Começo por referir cinco pontos essenciais para entender o que foram essas eleições:

Um primeiro ponto é que as eleições de 1992 foram também idealizadas como uma forma de emendar o passado, realizando as eleições que haviam sido previstas nos Acordos para a Independência. Do Alvor em 1975 a Bicesse em 1991 foi um passo que muito custou para colmatar aquela lacuna.

Um segundo ponto é que essas eleições seriam sempre, quaisquer que viessem a ser os seus resultados, a placenta de um novo regime político, na medida em que o MPLA que até aí governara Angola segundo um figurino constitucional de democracia popular se voltara para o pluripartidarismo, para a democracia ocidental e para o sistema económico de mercado ao mesmo tempo que a UNITA lutava pela democracia por via de eleições justas e livres.

Um terceiro ponto é que essas eleições – ao contrário de todas as outras realizadas posteriormente em Angola, tiveram de ser organizadas num prazo muito apertado que não admitia recuos ou ajustamentos, nem sequer a sua contemporização com outras tarefas indispensáveis como a extensão da administração do Estado a todo território nacional e a formação das Forças Armadas Angolanas.

Um quarto ponto é que essas eleições foram consideradas como o ultimo bilhete para apanhar o comboio da paz – para os negociadores e para a comunidade internacional elas eram efectivamente a condição sine qua non do fim da guerra entre o Governo e a UNITA.

Um quinto ponto é que ficou assente que o resultado dessas eleições seria a única via de legitimação do poder em Angola – substituindo definitivamente a legitimação pela força das armas.

Por todas estas razões, as eleições de 1992 tinham tudo para serem o epílogo de um capítulo sangrento e cruel e o prólogo de uma vida melhor para todos os angolanos. Todavia, e como todos sabemos, quando os resultados destas eleições foram conhecidos logo se esqueceu o maravilhamento que percorrera o país durante o registo dos eleitores, durante a campanha eleitoral, o próprio civismo demonstrado por mais de quatro milhões de eleitores nos dois dias de voto. De facto, assim que os resultados vieram ao conhecimento público, formou-se rapidamente uma tempestade de inconformação e reclamações que iam desde as pequenas irregularidades às acusações de fraude maciça, atingindo proporções de um tsunami político e social que espalhou o luto e o horror por todo o país. O dano estava feito e de modo irreparável. A história que se seguiu, como as tentativas para refazer o processo eleitoral com a realização da segunda volta das eleições presidenciais, os acordos políticos para a formação de um governo de unidade nacional e a atribuição de uma vice-presidência do Estado angolano ao líder da segunda força política continuam a ser matéria de estudo e reflexão sobre as causas desse desastre eleitoral de 1992.

Hoje à distância de quase trinta anos e depois de terem voltado a realizar-se três eleições, essa reflexão histórica vai-se tornando mais fácil, no entanto, o fantasma da não alternância no poder que para muitos é a essência do sistema democrático nunca aceitou nem aceitará a vitória do MPLA em 1992 e nas eleições realizadas até esta data.

Em 1992, depois de 17 anos de “encarceramento ideológico”, era fácil acreditar que a expressão da vontade da esmagadora maioria do povo angolano fosse no sentido da mudança. O facto é que o MPLA, no poder desde a independência nacional, aceitou também o processo eleitoral, não certamente como uma fatalidade que inevitavelmente o desalojaria do poder mas como uma oportunidade para se apresentar como o arauto da mudança da vida do país, ampliando a luta política não apenas aos tradicionais movimentos de libertação mas a todos os partidos políticos e abrindo a economia do país às regras e perspectivas do mercado internacional.

Foi nesta mudança que a maioria dos eleitores votou, ou foram os resultados eleitorais uma pura manipulação? São perguntas que ficam para a história. Eu tenho a convicção de que estas foram as eleições em que o povo angolano mais próximo se sentiu da exaltação da sua independência nacional. O voto de 1992 foi um voto não apenas partidário mas um voto de orgulho de ser angolano. Por isso eu disse menos de 24 horas depois de terem fechado as urnas que já era conhecido o seu vencedor e que esse era sem dúvida o povo angolano!

Não foram no entanto eleições perfeitas. Eram, aliás, duas eleições, que embora realizadas em simultâneo, eram eleições com diferentes boletins de voto e diferentes urnas. Se as eleições, legislativa e presidencial, além de simultâneas, tivessem sido sincronizadas como a máquina de um relógio, o número de votos expressos em cada uma delas seria exactamente igual, o que não aconteceu suscitando imediatas dúvidas de manuseamento ilícito dos votos e de urnas. Aconteceu que uma deficiente distribuição dos respectivos boletins de voto determinou que os boletins correspondentes a cada eleição não tivessem chegado a todas as assembleias de voto. Como consequência desta irregularidade foram constituídas mais 220 mesas de voto nas eleições presidenciais o que por sua vez se traduziu em mais 167.258 votos presidenciais que legislativos. De facto, apenas 5.345 mesas contaram votos para a eleição de deputados contra 5.565 para a eleição presidencial. Isto aconteceu em todas as província com a excepção apenas de Cabinda e Namibe. As maiores discrepâncias ocorreram em Luanda, Huambo e Uíge em que a diferença foi de 44, 42 e 34 mesas, respectivamente. Os resultados por província, em cada uma das eleições revelavam à saciedade que aquelas discrepâncias não tiveram qualquer impacto nos resultados eleitorais: o MPLA obteve nas legislativas maiorias absolutas em 13 províncias contra 4 maiorias absolutas da UNITA e 1 maioria relativa da FNLA. As eleições presidenciais, por sua vez, exigiriam uma segunda volta para a sua decisão.

Certamente muita gente se perguntou e pensou porque é que Jonas Savimbi nunca aceitou a segunda volta das eleições presidenciais de 1992. Pik Botta, o ministro sul-africano que viera a Luanda observar as eleições, dissera-me que havendo segunda volta iria propor a Savimbi que esta se realizasse em termos e condições que salvaguardassem todas as razões de queixa relativamente ao primeiro escrutínio. Com toda a sua inteligência e instinto, ele vira nessa segunda volta uma oportunidade única para ultrapassar a Troika dos Embaixadores e a “pobre senhora” Representante Especial das Nações Unidas, propondo uma solução exclusivamente africana do conflito que a todos assombrava naquele momento de intensidade dramática e shakespeariana. Assim como Ricardo III, no fragor da sua batalha, daria o seu reino por um cavalo, Pik Botta, antes de ir ao Huambo, clamava por uma segunda volta para salvar Angola! Depois do Huambo, a raiva e a frustração tomaram o lugar da sua última esperança mas Pik deve ter tido pelo menos uma intuição do que pensava aquele homem solitário no Huambo de quem teve a breve ilusão de ser o mentor! Só havia uma razão para recusar a segunda volta e essa era a certeza da irreversibilidade dos resultados alcançados pelo MPLA, contra todas as expectativas de condenação nas urnas dos princípios que o nortearam desde a Independência! Savimbi com toda a inteligência que se lhe reconhece, teve a noção exacta de que os acordos de Bicesse, apesar de feitos à sua medida, se revelaram um amargo engano. Não seria enganado uma segunda vez, quaisquer que fossem as palavras aliciantes que Pik Botta e um cortejo de bem intencionados funcionários internacionais lhe tenham vindo segredar ao ouvido.

Depois de tantos anos decorridos sobre essas primeiras eleições noto com alguma ironia que só mesmo num Colóquio sobre História haveria oportunidade de voltar a falar delas. De facto, elas quase que foram apenas um incidente de percurso na governação de 44 anos do MPLA. Uma janela que se abriu e logo se voltou a fechar. De certo modo, elas constituíram apenas o traço de união entre a primeira e a segunda república. Um traço de união, apenas, porque nem a primeira república acabou com essas eleições, nem a segunda república nasceu das eleições de 1992. O que marca a passagem da primeira para a segunda república é a viragem do MPLA ao novo sistema político, social e económico que anunciou com o seu novo programa de reformas desde finais da década de 80. Por isso é mais correcto dizer que, nesse sentido, houve eleições em 1992 porque antes houve uma mudança do MPLA e não que alguma mudança tivesse vindo por causa dessas eleições.

Não obstante, sem estas eleições de 1992 tudo seria diferente, porque sem elas, primeiro, não haveria legitimidade para o exercício do poder; em segundo lugar, sem elas, a guerra continuaria a ter o apoio internacional que deixou de ter. Essas eleições, apesar de novo interregno de guerra, foram um ponto de não retorno. O poder procurou vias de reconciliação com base nos resultados eleitorais, a experiência do GURN foi uma consequência desses resultados e o Governo de Angola reconciliou-se também, e consequentemente, com a comunidade internacional. Depois delas outras eleições se fizeram em 2008, apenas legislativas, em 2012 apenas presidenciais e em 2017, eleições gerais como em 1992, mas desta vez apenas com um único boletim de voto e uma única urna para depositar o voto de cada eleitor, mantendo-se a supremacia eleitoral do MPLA como um eco dos resultados das primeiras eleições, sem deixarem de se ouvir, também, os ecos de manipulação dos resultados.

Apesar de tudo o que aconteceu e continua a acontecer, o sonho que começou em 1992 de uma vida melhor através da escolha dos nossos governantes continua vivo. Isso também devemos às nossas primeiras eleições. A esse dia em que a vontade popular deixou de ser um verbo para encarnar nos seus eleitores!

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