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Os factos para além da ficção


Agradeço ao Núcleo dos Combatentes da Cidade do Porto e ao Programa Fim do Império esta oportunidade para falar do meu livro DESCOMPASSO que teria muito gosto que lessem e o apreciassem não apenas como o relato de um episódio histórico ocorrido em Angola em 1962.... como também a forma que o reveste, ou envolve, estou a referir-me, ao romance que apenas se serve da história como pretexto, ou contexto, estas coisas não são muito fáceis de definir do ponto de vista literário.

Sobre esta parte melhor falaria o meu editor PEDRO SOUSA aqui presente que gostou não somente do enredo como da aura de romance que o cobriu e a quem também estou muito grato pois a ele fiquei a dever a publicação deste livro. Acontece que o Prof. Pedro Sousa é um admirador incomensurável do Prof. Doutor Adriano Moreira e teve por isso o cuidado de pessoalmente mostrar o livro ao Professor antes dele ser dado à estampa. O livro inicia aliás por uma NOTA DO EDITOR dando conta dos seus escrúpulos para com a verdade histórica dos acontecimentos a que o meu livro se refere. Começa mesmo por dizer que “o romance histórico é ferramenta que permite reescrever de forma sub-reptícia a percepção da verdade, pelo que nada dispensa o leitor de um cuidado redobrado. Acresce que neste caso há personagens centrais vivas, a saber: Deodato Coutinho; Amadeu Castilho Soares; Fernão Fernandes Thomaz, Jaime de Sousa Araújo (este infelizmente falecido no passado domingo 90 de Dezembro) e Adriano Moreira. Cada um viveu esta época (1961-1962) intensamente e (res)guarda a sua verdade. Importa respeitar.

Fica o introdutório aviso que os diálogos são criação do autor e devem ser considerados pura ficção. Quanto aos acontecimentos críticos que ocorreram, salvo raras excepções assinaladas, foram escrutinados e verificados, e em anexo o leitor encontrará um conjunto de documentos que adicionam detalhe. É claro que (para ser romance) este DESCOMPASSO narra subliminarmente uma história de amor que nunca supera a impositiva sequência de acontecimentos que medeiam entre a nomeação do Governador Geral de Angola General Venâncio Deslandes em 1961 e a sua demissão um ano depois, seguida em jeito de epílogo pela demissão do Ministro do Ultramar Adriano Moreira.

1961 foi, como todos lembramos o annus horribilis de Salazar e quase tudo por causa de Angola. Logo a 4 de Janeiro levantaram-se os trabalhadores da apanha do algodão na Baixa do Cassange, um sinal político de que os ventos iam mudar. A meados do mesmo mês o seu inimigo n.º 1, o Capitão Henrique Galvão toma de assalto o Santa Maria o mais icónico paquete português e ficou a ideia que pretendeu rumar a Angola onde a 4 de Fevereiro se dá a sublevação e ataque às cadeias, data que ainda hoje é comemorada como marcando o início da luta armada em Angola. A 15 de Março, forças da UPA, atacam e devastam as fazendas de café no Norte de Angola. Um mês depois Botelho Moniz ministro da defesa tenta depor o próprio Salazar, um golpe que foi todavia liminarmente abortado pelo seu destinatário. Era preciso alterar rapidamente e em força o rumo dos acontecimentos. O primeiro Governador Geral civil, Dr. Silva Tavares é chamado a Lisboa. Salazar tem em mente voltar a nomear um militar que fosse ao mesmo tempo Governador e Comandante em Chefe, um pouco à sua própria imagem que tinha assumido a pasta da Defesa.

Um novo Ministro do Ultramar é nomeado. Não foi grande a surpresa já que Adriano Moreira era o promissor Secretário de Estado do Almirante Lopes Alves que já se achava muito alquebrado de saúde. A surpresa era o ser um civil e não um civil qualquer como a sua informação da PIDE eloquentemente revelava. A escolha para Governador Geral e Comandante em Chefe recaiu no General Venâncio Deslandes então Embaixador de Portugal em Madrid. Não foi a escolha sugerida pelo Ministro do Ultramar como até aí era tradição e foi mesmo uma escolha contra o coração do Ministro. Mas Salazar foi inexcedível a contornar as potenciais objecções do seu novel Ministro.

Um ano depois nem um nem outro era Governador e Ministro. O que se passou para que isto acontecesse?

Porquê?

A resposta a estas interrogações inspiraram este livro. Contei a história que me pareceu a mais plausível.

O Prof. Adriano Moreira disse-me numa mensagem muito delicada que a história estava mal contada e não abriu mão mesmo de uma implícita censura, acrescentando que era de esperar que eu tivesse investigado mais e melhor. Deu-me ao mesmo tempo o contentamento de admitir que o livro ainda assim estava muito bem escrito...

Tenho de compreender que o Prof. Adriano Moreira não deva ter apreciado que na minha história o General Deslandes pareça desempenhar o papel ou de herói ou de vítima, estando-lhe reservado a ele um papel que é quase o do “mau da fita”.

Muito simplificadamente foi assim que as coisas aconteceram: O General Deslandes chega a Luanda e constata com espanto o atraso dos angolanos no capítulo da sua educação, em particular da sua educação superior, condição indispensável para rapidamente poderem assumir posições de relevo na administração da Província a todos os níveis. A desproporção entre o espaço geográfico e as suas gentes em relação ao pequeno País que era Portugal de tal modo se lhe apresentou como a revelação do que o futuro teria à sua espera impeliu-o a escrever uma carta a Salazar, logo no princípio de 1962, propondo com toda a candura do mundo uma espécie de federação do alto da qual Salazar reinaria como autoridade indiscutível. Sem resposta a esta carta Deslandes, empolgado com os poderes assumidos em Lisboa, considerando que acima de si só o Imperador – neste caso o Presidente do Conselho e Ministro da defesa por quem Deslandes nutria uma lealdade inquebrantável – avança para a criação de uma universidade em Angola à medida das necessidades imperiosas que pretendia satisfazer durante o seu mandato.

O Ministro do Ultramar passa por Luanda a caminho de Moçambique e não quis nem ouvir as divagações do Governador sobre a sua academia angolana. Era ele o maestro que tinha de reger todas as províncias ultramarinas de acordo com a sua partitura e era o que mais faltava um Governador que queria tocar a sua própria música, como se ele fosse mesmo um compositor e desafinando a sinfonia que o Ministro tinha em vista lançar em grande concerto. Dias depois na Beira, na presença do Governador Geral Sarmento Rodrigues e diante do Bispo da Beira D. Sebastião de Rezende, grande crítico da administração colonial, anunciava urbi et orbe a criação da universidade em Angola e Moçambique como ramos da Universidade portuguesa e a estabelecer nos mesmos moldes.

Os relógios do Ministro e do Governador não estavam acertados um pelo outro... e esse descompasso iria agravar-se nas semanas e meses que se sucederam. Deslandes faz aprovar no miniparlamento angolano – o Conselho Legislativo – os chamados Centros de Estudos Universitários, servindo-se, para o efeito de disposições legais em vigor em Angola que lhe permitiam, segundo uma razoável interpretação jurídica, a sua instalação.

Em Lisboa o Ministro contra ataca e aprova na Assembleia Nacional os Estudos Gerais para o Ultramar, com base no modelo da Universidade portuguesa, desvalorizando como mera improvisação desacertada a criação antecipada de Deslandes que, apanhado de surpresa, olhava ora para um ora para outro modelo não distinguindo as diferenças.

O que entretanto se lhe exigia era a revogação dos Centros de Estudos Universitários, confessar que se metera em seara alheia, uma humilhação sem dúvida, a aceitação de uma força superior à sua que tinha dificuldade em reconhecer... sobretudo tendo consciência da força extraordinária que se conjugava no seu braço militar.

É este impasse que é aproveitado pelos nacionalistas angolanos da Associação dos Naturais de Angola – a ANANGOLA - que agarram a oportunidade e vão ao ponto de abordar o Governador Geral com uma tentadora proposta política.

Em plena crise, Deslandes consulta as altas patentes militares em Angola. Este facto é muito interessante e pouco se sabe sobre o conteúdo dessa reunião ou reuniões efectivamente realizadas naquelas horas difíceis. (Que Deslandes ouviu os militares não restam dúvidas e a alusão a estas conversas é precisamente um dos items que constam do questionário elaborado pelo próprio Prof. Adriano Moreira e sobre o qual o Ministro queria uma resposta cabal do Governador como já me irei referir adiante).

Salazar, com Adriano Moreira necessariamente como instigador, lança mão de um engodo para atrair Deslandes a Lisboa e prevenir qualquer possibilidade de declaração unilateral de independência como se murmurava por todos os cantos de Luanda que iria acontecer. Salazar, na sua qualidade de Ministro da Defesa, convoca Deslandes para com ele se reunir em Lisboa, agendando como tópico primordial a discussão do novo figurino das relações da metrópole com as províncias de Governo Geral.

Deslandes não vê o logro, nem quer ver, mesmo quando alertado por Deodato Coutinho, o seu Secretário Geral, de que tal convocatória não vinha da Presidência do Conselho mas do Ministro da Defesa que não tinha qualquer competência para discutir aquelas matérias. Mas Deslandes acredita que esta convocatória é a tão esperada resposta à carta que escreveu a Salazar propondo uma verdadeira federação de Estados na qual Salazar seria o Chefe acima de todos os Chefes estaduais...

Salazar recebe o Governador Geral no Forte de São João do Estoril, com todas as deferências e amabilidades e Deslandes lá esteve encantado e entretido largas horas pelo seu anfitrião enquanto o seu sobrinho e Chefe de Gabinete em Angola Dr. Fernão Fernandes Thomás, que o acompanhou nesta viagem ficou no terraço solitariamente sentado na cadeira que viria a ser fatal ao seu habitual usuário.

Só depois de abandonar o Forte é que Deslandes se dá conta de que não havia nenhuma discussão prevista para mudar o regime colonial, mas era tarde de mais.

Aliás, a viagem ia converter-se num verdadeiro pesadelo. Ao deslocar-se ao Ministério do Ultramar para apresentar ao Ministro, os cumprimentos da praxe, o Governador Geral foi brindado com um questionário de cujas respostas dependeria o seu regresso a Luanda. Tratava-se de uma sucessão de perguntas elaboradas pessoalmente pelo Ministro que implicitamente continham um autêntico libelo por alta traição. Muito particularmente a sua convocação dos militares sob o seu comando em Angola para se pronunciarem sobre a questão da criação da universidade era crucial. A suposição de que o Governador procurara respaldo para resistir e desobedecer ao seu Ministro consubstanciaria um acto de rebeldia de consequências inauditas.

Deslandes não respondeu ao questionário e nunca mais voltou a Angola. Altamente condecorado, porém, remeteu-se a um verdadeiro silêncio sepulcral.

Sem receio de ser contraditado, o Prof. Adriano Moreira tem dito preto no branco que o que o General Deslanes queria era dar um golpe para promover uma independência ao estilo da Rodésia de Ian Smith.

Não é isso que resulta da história por mim contada. É compreensível que o General Deslandes tenha sofrido profundamente com a posição do Ministro Adriano Moreira em relação ao projecto que tanto acarinhara, mas não reuni elementos que me permitissem concluir que tenha acalentado declarar a independência de Angola. O que lhe terão dito os militares no momento da crise ou especular sobre qual teria sido a sua posição se Deslandes manifestasse o propósito de seguir em frente com uma declaração unilateral de tão poderoso efeito, continuará a ser um mistério, pelo menos para mim.

O fantasma de alta traição à Pátria sempre traria à colação o grito que D. Pedro soltou nas margens do rio Ipiranga, ele que também era militar e filho do rei de Portugal, como os nacionalistas angolanos não se esqueceram de recordar ao Governador aquando da sua sigilosa reunião no Palácio do Governo de Luanda.

Devo dizer, para finalizar, que a minha história contem suficiente ambiguidade para que os leitores se possam livremente inclinar-se mais para uma ou para outra das versões do que realmente se terá passado. Como poderá o leitor verificar, eu não digo nem insinuo em lado nenhum desta história que nunca tenha passado pela cabeça do Governador a ideia de uma declaração unilateral de independência. Independência que provavelmente deve ter admitido que seria o destino irreversível para o País portentoso cujo governo lhe havia sido confiado por um daqueles acasos do destino... Ou não terá sido assim tanto por um acaso do destino mas por deliberada motivação de Salazar que o terá escolhido precisamente para travar o Ministro do Ultramar que acabara de nomear... sabendo bem que não podia nele depositar a mesma confiança política que depositava no General Deslandes.

Adriano Moreira tem afirmado e escrito que deixou o governo porque o próprio Salazar lhe terá confessado que não podia continuar a apoiar a sua política. Não acho isso: tudo o que o Ministro fez em tão curto espaço de tempo, reformas insofismáveis que ficaram para a História, tudo isso continuou durante o governo do Coronel Silvino Silvério Marques considerado em Angola por muito tempo como o mais progressista dos Governadores Gerais. A Amadeu Castilho Soares, sucederia na pasta da educação o Dr. Pinheiro da Silva que iria ser um seu determinado continuador a dar aplicação por muito tempo ao plano de ensino idealizado durante a governação do General Deslandes.

Afastado Deslandes da equação política, Salazar considerou mais prudente livrar-se também de Adriano Moreira que dali em diante ficaria com roda livre, tanto mais que a escolha do Governador fora de Salazar e só dele e Moreira nunca deixaria de lho lembrar. Tinha, aliás, Salazar uma boa razão para o dispensar: tal como Deodato Coutinho pensava, o Presidente do Conselho nunca demitiria um e deixaria o outro. Os culpados do conflito eram os dois e a melhor maneira de o resolver passava pela demissão de ambos. Por uma subtil delicadeza não o faria nunca ao mesmo tempo. Deodato Coutinho que regressava também a Lisboa depois de por alguns dias ter ficado como encarregado do Governo e não queria ir apresentar cumprimentos ao Ministro do Ultramar calculou que bastariam dois meses... teve de esperar mais um para desembarcar em Lisboa!

Mas Adriano Moreira não foi despedido do Governo apenas por razões salomónicas. É que ele tinha tudo para se perfilar como o seu sucessor. Não por acaso, em Novembro de 1962 aquando da reunião em Lisboa do Plenário do Conselho Ultramarino, alguém terá sugerido que Adriano Moreira que presidia a essa memorável sessão pudesse vir a reforçar a sua posição no governo e logo como vice-presidente do conselho de ministros! Uma sugestão de que já se cogitava na sua substituição num futuro não muito distante. Adriano Moreira deixou o Governo em Dezembro de 1962 caindo o pano sobre este drama político. Angola continuaria em guerra até à Revolução de Abril de 1974.

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